Não vamos crer que essa “pequena trilha” só convenha às pequenas virtudes, nem que essa “santa infância” seja mera criancice se os Papas a aconselham a todos, se veem nela, para os mais fervorosos, o segredo da santidade, há de ser coisa séria; segundo a palavra de Pio XI, que “essa simplicidade infantil só tenha de infantil o nome”.
De fato, era a íntima opinião de Teresinha. Durante a sua moléstia, as irmãs que lhe exprimiam a sua inquietação, manifestava:
Perguntou-lhe sua irmã Maria. Resposta:
“Sou, mas um bebê muito sabido!”
Teresinha sempre pensou que a “santa infância” não era uma infância como as outras; para ser santa, se é que deve conservar os predicados da infância, sobrenaturalizando-os, deve proscrever-lhes os defeitos. Pensou sempre que se, para ser praticável às pequenas almas, a sua pequena trilha não se atulha de grandes obras, nem de grandes austeridades, nem de milagres, nem de êxtases, não basta olhá-la de longe e sorrir; é preciso percorrê-la, para que leve à meta.
Ela era mesmo bastante sabida para prever que se arrisca a ser mal compreendida. A uma noviça, que lhe manifestava a intenção de comunicar essa senda aos parentes e amigos, respondeu ela:
“Oh! Preste bem atenção ao se explicar, porque a nossa pequena trilha mal compreendida poderá ser tomada por quietismo e iluminismo. Não julgue ser trilha de repouso”
Não, um caminho de repouso não conduz a parte alguma, e Teresa quer ir longe. Quer ficar criança; contudo, não criança amimada a cuidar só dos seus caprichos.
Quer cativar Jesus com carícias; e isto parece infantil tanto quanto bonito! Quais, porém, essas carícias? Sacrifícios.
“A sua única ocupação será colher flores, flores do amor e do sacrifício, e oferecê-las ao bom Deus para seu prazer”
Pois bem! É uma ocupação isso, e séria! Não é quietismo!
E se diz bonitas palavras, bem ternas, bem carinhosas, não são infantilidades, pois os atos seguem. Se fita Jesus nos olhos, não é para se divertir, mas para adivinhar o que lhe pode agradar, e realizá-lo logo.
Ou mesmo, se parece divertir-se, é brinquedo de criança só na forma; o fundo é sério até ao trágico. Eis como ela conta as peripécias através das quais vinga a sua vocação:
“Oferecera-me ao Menino Jesus para ser o Seu brinquedinho. Dissera-Lhe que não se servisse de mim como de um brinquedo de valor, que as crianças se contentam com olhar sem tocar; porém qual bolinha sem valor, que Ele poderia atirar ao chão, empurrar com o pé, furar, deixar a um canto, ou então estreitar ao coração, se isto Lhe desse prazer. Numa palavra, eu queria divertir o pequeno Jesus”
Em Roma, acrescentava, por alusão ao malogro da sua diligência junto a Leão XIII, “Jesus furou o seu brinquedinho: queria ver, sem dúvida, o que havia dentro. E depois, contente com a descoberta, deixou cair a bolinha e adormeceu. Que fez no seu doce sono, e que foi da bola abandonada? Jesus sonhou que se divertia ainda, que ora a tomava e ora a deixava, que a jogava bem longe, a rolar, e finalmente, a apertava ao coração”.
Em suma, se ela se abandona qual criança numa confiança inconfundível, entrega-se com uma presteza, continuidade e generosidade tal que, vê-lo-emos, atinge ao heroísmo. A sua pequena trilha levou-a até lá.
Essa permanece acessível a todos, mas leva mais ou menos longe na medida em que se anda nela. Não é caminho em que a gente se deite para dormir, não é quietismo.
Nem, tão pouco, iluminismo.
O iluminismo é, primeiramente, contra o bom senso. A marca de Teresinha foi a aliança indissolúvel da espontaneidade com o bom senso; e em grau raro.
Desde tenra idade tinha palavras admiráveis pelo senso profundo. De natureza ardente e impetuosa, era sobretudo maravilhosamente equilibrada: “Não se excedia em nada”, diz-nos uma de suas irmãs. Se não punha limite ao surto para Deus, aos seus desejos de santidade, a confiança, a coragem, é que nisso, precisamente, a gente nunca se excede.
O capelão das beneditinas, que lhe ensinava catecismo no colégio, admirado da sua madureza precoce, chamava-lhe a sua “doutorazinha”.
A Madre Maria de Gonzaga, que foi severa para ela, escrevia desde os primeiros dias do noviciado:
“Eu nunca teria podido acreditar em juízo tão adiantado numa menina de quinze anos. Não há palavra alguma a dizer-lhe, tudo é perfeito”
Aos vinte anos teve a seu cargo a formação das noviças. Em tarefa tão delicada portou-se com prudência consumada. E não só as noviças tiravam beneficio da sua direção.
Sucedia que as religiosas mais antigas, às escondidas, às vezes, furtivamente, sentindo bem o que o seu expediente tinha de insólito, vinham solicitar os conselhos daquela menina, quando se viam na necessidade duma decisão selada pelo cunho dum juízo seguro e duma inspiração sobrenatural. Para quem quer que saiba um pouco de psicologia, é este um testemunho que pesa!…
Um dos confessores que melhor a conheceram declarava:
“Jamais notei nela algo de imprudente e de inconsiderado, nada que traísse inconsideração ou impulso da natureza. Em todas as suas palavras, e mesmo na expressão do semblante, havia ponderação maravilhosa”
Enfim, essa ponderação, essa madureza, essa sabedoria, Bento XV e Pio XI celebraram-na por sua vez; a doutrina da pequena senda, eles a recomendaram a todos como “uma trilha certa de salvação” e como “o segredo da santidade”. E, ademais, canonizaram Teresinha.
Ora, os papas não canonizam os iluminados, nem pregam o iluminismo.
De fato, aliás, não foi no sonho, nem em visão, nem no êxtase que Teresinha achou o seu método. Deus ajudou-a, sem dúvida; contudo, deixando-a ajudar-se a si. Essa ideia ela a amadureceu pouco a pouco, através de pesquisas, de reflexões, de experiências e de orações.
E, em definitivo, em que dá esse método? Em destacar, na espiritualidade, o essencial. Em repor melhor em luz dois ou três textos do Novo Testamento:
“Se vos não converterdes e não vos tornardes como crianças, não entrareis no reino dos céus. Nisi conversi fueritis, se vos não converterdes, se não mudardes”
Há, portanto, nota Bento XV, mudança a fazer, e que não se fará sem um esforço, um trabalho. Qual?
“Nisi efficiamini sicut parvuli, se não vos fizerdes como crianças”
Não se trata de sermos crianças, mas de nos parecermos com elas. E quem é que deve ser outra vez criança senão aquele que o não é mais? É pois, aos adultos que esse preceito se dirige. Um preceito verdadeiramente, e que se endereça a todos, pois é a condição para “entrar no reino dos céus”.
E o meio de consegui-lo? Dois outros textos o indicam:
“Sine me, nihil potestis facere, sem mim nada podeis fazer”
Nada é valido para a eternidade; não muito, nem pouco, porém nada; e é Jesus, a Verdade, que fala.
São Paulo exclama:
“Omnia possum in eo qui me confortat, tudo posso naquele que me conforta”
E isto completa aquilo. Senhor, eu não posso nada, bem o sei, confesso-o, proclamo-o, regozijo-me disso: In hoc ego sperabo, é nisto que coloco a minha esperança; é a minha impotência que faz a minha segurança. Porquanto, bem a sabeis, Vós, a minha impotência! Disseste-o: Sem Vós, nada posso fazer.
Entretanto, Vós quereis que eu faça muito, que me salve, me santifique, seja “perfeito como o Pai celeste é perfeito”. Então é que, portanto, me quereis prestar auxílio, ajuntar à minha miséria a Vossa misericórdia, à pobreza a riqueza, à fraqueza a força. Pois bem! Se só por mim não posso nada, Convosco nada há que eu não possa. Tenho só que me fazer pequeno, pequeno como uma criança, e me lembrar de que Sois meu Pai. Mas eis aí, justamente, a “santa infância”.
Entretanto, Vós quereis que eu faça muito, que me salve, me santifique, seja “perfeito como o Pai celeste é perfeito”. Então é que, portanto, me quereis prestar auxílio, ajuntar à minha miséria a Vossa misericórdia, à pobreza a riqueza, à fraqueza a força. Pois bem! Se só por mim não posso nada, Convosco nada há que eu não possa. Tenho só que me fazer pequeno, pequeno como uma criança, e me lembrar de que Sois meu Pai. Mas eis aí, justamente, a “santa infância”.
Impossível levar demasiado longe a desconfiança de mim próprio; pois, exatamente, nada posso. Impossível levar demasiado longe a confiança em Deus; porque Ele pode tudo, e o Seu amor é infinito como o Seu poder. Eis os dois faróis que iluminam toda a espiritualidade. Mas eis precisamente a “pequena trilha” de santa Teresinha.
Não há aí nem quietismo, nem iluminismo, porém cristianismo o mais puro, haurido na fonte. E já não há admiração de que os papas proclamem essa trilha acessível a todos os cristãos, mostrem nela, para os mais fervorosos, “o segredo da santidade”.
Poder-nos-íamos admirar é de que uma jovem, em tão curta vida, tenha tão exatamente visto isso, e o tenha posto em tão bela luz, que os versados em ciência sacra não tenham mais senão que se fazerem seus discípulos.
“Ela desentulhou o caminho do céu, aprecia um cardeal; nas nossas relações com o bom Deus, ela suprimiu as matemáticas”
Substituiu-as por alguma coisa que vale infinitamente mais: um coração de criança.
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