segunda-feira, 7 de novembro de 2016

É UM ERRO NÃO OUSAR OFERECER AS PRÓPRIAS AÇÕES A DEUS POR NÃO TE­REM TODA A PERFEIÇÃO QUE SE DESEJARIA, E QUE SE JULGA NECESSÁRIA.


Dizeis que não ousais oferecer as vossas ações a Deus; e as perdeis quase todas, porque a idéia que tendes da grandeza de Deus, da Sua santidade infinita, vos re­presenta vivamente toda a perfeição que uma ação deve ter para ser digna d’Ele. Ainda não sentis em vós essa determina­ção de tender à perfeição que encarais. A tentação persuade-vos de que, se não der­des às vossas ações essa perfeição que julgais indispensável, elas não podem agradar a Deus, e de que Ele as rejeita absolutamente. Guiada por este erro, na­da ou quase nada ofereceis ao Senhor. Perdendo de vista a Deus, já não seguis senão as vossas inclinações; e, por isso que não vos sentis disposta a vos cons­tranger em tudo, não vos constrangeis em nada.
Semelhante princípio só pode conduzir à inação para as coisas do Céu. Que cris­tão se aplicará aos seus deveres para agradar a Deus, para glorificar a Deus, se me­ter na cabeça que Deus não aceitará as suas ações se ele não lhes der toda a per­feição que ele acredita haver nas dos Santos?

É aqui que deveis aplicar o conselho de Santo Agostinho: “Fazei o que puderdes, e pedi o que não puderdes, a fim de o poderdes”. Esse grande Santo pensava bem diferentemente de vós, quando assim falava ao seu povo. Ele sabia que o nosso Deus, sempre um Pai terno e compassivo, que conhece bem o limo de que somos for­mados, vem sempre em nosso socorro para nos fortificar, e nos ajuda segundo a nossa confiança n’Ele.

Não se chega de chofre à perfeição. Faz-se progresso na ciência da salvação, com o socorro da graça, consoante a Pro­vidência ordinária, como se faz progresso nas ciências naturais, pela aplicação dos princípios à prática. Esta aplicação torna-se sempre mais perfeita pelo uso mais frequente que dela se faz e pela atenção que se lhe dá. Um artista que não quises­se fazer nenhuma obra da sua arte, um orador que não quisesse empreender ne­nhum discurso, por não poderem ainda dar às suas obras toda a perfeição dos grandes mestres, com razão se diria que, por essa conduta insensata, eles nunca chegariam a alguma coisa. Não basta co­nhecer os princípios, cumpre aplicá-los com justeza. Os talentos desenvolvem-se pouco a pouco pelo exercício. Antes de dar à sua obra toda a perfeição que lhe convém, fazem-se muitas obras imperfei­tas. É só por um trabalho assíduo que se consegue corrigir os defeitos que se reconhecem na obra: a experiência é so­bejamente constante para que se possa duvidar disso. É pelas reflexões sobre as próprias faltas que se aprende a evitá-las: para isso, importa ensaiar-se cedo, não se contentar com a teoria, e pôr mãos à obra.

Na ciência dos Santos, e na prática das virtudes, além da aplicação e da assidui­dade, necessita-se de um socorro parti­cular da parte de Deus. Suponho que, pelo desejo que se tem de lhe agradar, pede-se-Lhe amiúde esse socorro, como o artista recorre ao seu mestre. No mais, os princí­pios que acabamos de assentar são os mesmos. Uma alma cristã não conseguirá corrigir-se pelo simples conhecimento das regras que devem dirigi-la, mas sim pela aplicação dessas regras à sua conduta. Se ela não os aplicar, na prática nada fará para se aperfeiçoar. Admito que, ofe­recendo a Deus as suas ações, ela ainda não lhes dá toda a perfeição que elas poderiam ter; mas, pelo menos, lhes suprimirá sempre alguma imperfeição, e por esse modo torná-las-á menos defeituosas aos olhos de Deus. O sacrifício que ela fará a Deus desse defeito tornar-se-lhe-á útil, quer pelo hábito que ela contrairá de se vencer em mira a Deus, quer pelas graças que essa docilidade às luzes do Espírito Santo lhe atrairá.

Fazei, pois, sempre o que puderdes, e pedi com confiança o que não puderdes.

Uma pessoa extremamente viva, forte­mente apegada à sua vontade, ao seu juízo particular, nas relações que tiver com o próximo deixar-se-á levar, vinte vezes ao dia, à impaciência, à impetuo­sidade do seu caráter: se ela não pensar em que todas as suas ações devem ser re­feridas a Deus, nada será capaz de de­tê-la, mas, ao contrário, este pensamen­to, se ela a ele se prender, detê-la-á pri­meiramente nas ocasiões mais fáceis; e, se noutras não a detiver inteiramente, pelo menos lhe moderará os ímpetos, lhe fará cortar muitas coisas que a caridade condena. Finalmente, se esse pensamento não tiver nenhum efeito, será uma resis­tência à graça, coisa de que é preciso pe­dir perdão a Deus. Todavia, essa mesma falta servirá para corrigi-la, quer pelo fa­to de humilhá-la diante do Senhor, quer pelas reflexões salutares que ela fará so­bre a sua vivacidade quando, mais tran­quila, testemunhar a Deus o seu pesar por isso.

O que aqui se diz da vivacidade deve aplicar-se a qualquer outro defeito que pode tornar defeituosas e imperfeitas as ações.

É certo, e a experiência o confirma, que resulta sempre um bem dessa refe­rência das próprias ações a Deus. Este pensamento: É para Deus que eu quero agir, não pode deixar de produzir uma impressão salutar, não pode deixar de ani­mar a evitar os defeitos que podem insi­nuar-se na ação, de sustentar enfim no combate que se tem consigo mesmo. Por pouco fiel que sejamos a esta prática, ex­perimentaremos que tornamos as nossas ações sempre menos defeituosas, que de dia para dia as tornamos mesmo mais perfeitas, pelo socorro das graças que re­cebemos.

Deus nunca deixa sem recompensa a boa vontade que lhe testemunhamos em­pregando os meios que Ele nos designou para nos tornarmos melhores. “Andai na minha presença, diz Ele a Abraão, e sereis perfeito” (Gn 17, 1). Andar na presença de Deus é referir a Ele todas as nossas ações.

Mas, finalmente, quando eu oferecer a Deus a minha ação, na qual se insinua­rão muitas negligências, e mesmo faltas, posso lisonjear-me de que essa ação tão imperfeita me seja de alguma utilidade, e de que o Senhor queira levar-ma em conta?

Suponho que, quando se oferece a Deus a sua ação, por mais temor que a expe­riência suscite, não se está na determina­ção de cometer as faltas que se prevêem ou que se temem. Se, no curso da ação, nos tornamos fraco, frouxo, tíbio, negligen­te, infiel, sem dúvida Deus não olhará as nossas negligências e as nossas faltas se­não para no-las exprobrar; mas as Suas exprobrações serão as de um Pai terno que tem compaixão da nossa fraqueza. Elas vos animarão a precaver-vos contra a covardia a que destes ouvido; e, por um efeito dessa misericórdia infinita de que usa a nosso respeito, Ele receberá o bom desejo que lhe houverdes mostrado, em­bora a execução dele seja tão imperfeita.

Uma alma cristã reconhece então com humildade a sua fraqueza, a sua incons­tância; reanima a sua confiança, o seu amor; redobra as suas preces, na espe­rança de que Deus lhe dará mais graças para se tornar mais fiel. Guardar-se-á bem de abandonar, seja lá quando for, os meios que lhe podem ser úteis para se corrigir. Repitamo-lo sem cessar: ela faz o que pode; pede o que ainda não pode: sempre na confiança de que esse meio, que vem de Deus, se não tem hoje todo o efeito que deve ter, tê-lo-á dentro em um mês, tê-lo-á enfim certamente, se ela não o desprezar, e se for constante em empregá-lo.

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