quinta-feira, 3 de novembro de 2016

DOS MOTIVOS NATURAIS QUE SE MIS­TURAM AS RETAS INTENÇÕES; NOVO PRETEXTO PARA DESÂNIMO


Reconhece-se a necessidade de agir em mira a Deus, para tornar as próprias ações agradáveis a Deus e dignas das Suas re­compensas. O que detém uma alma nesse exercício salutar é que, quando ela assim quer dirigir a sua intenção, o demônio, ou a sua imaginação, sugere-lhe mil motivos humanos de razão natural, de amor-pró­prio, de respeito humano, de inclinação. Então ela se persuade de que, apesar do oferecimento que fez dessas ações a Deus, não é por Ele que ela age, mas sim para se satisfazer a si mesma. Sente vivamente a impressão que no seu espírito fazem os motivos naturais, e sente que é muito mais fraca a impressão dos motivos sobrenatu­rais. Julgando, por essa impressão mais sensível, da intenção que a faz agir, ela decide que a sua ação não é feita para Deus, que é inútil oferecer-lha. Abando-na-se, pois, aos motivos naturais. Desanimada por essa tentação que se apresenta amiúde, ela não pensa mais em oferecer o que quer que seja a Deus, e assim torna-se o joguete e a vítima do pai da mentira, ou dos seus próprios erros.
Para se curar sobre este ponto, deve-se notar que os motivos naturais causam es­sa viva impressão não pela sua solidez, mas porque, sendo proporcionados à nos­sa natureza e conformes às nossas incli­nações, não precisamos de nenhum socor­ro estranho para lhes conhecer e lhes de­gustar tudo o que neles podemos achar de satisfatório; e porque nada em nós se opõe à impressão que eles causam. Ao contrário, os motivos sobrenaturais não causam essa impressão tão viva, porque, estando numa ordem superior à natureza, e sendo contrários às nossas inclinações naturais, precisamos do socorro de Deus para resistir a essas inclinações que se opõem à nossa docilidade, para degustar essas miras sobrenaturais, e para apreciar as vantagens que nelas acharemos.

Esse socorro, que Deus não nos recusa quando o pedimos, às vezes tem essa viva­cidade de impressão; mas nem sempre a tem. Deus, Senhor dos dons, concede-os às Suas criaturas segundo o desígnio da Sua Providência sempre sábia e miseri­cordiosa. Esse socorro põe sempre uma alma em estado de resistir à tentação que procura afastá-la de Deus; e, se a sensi­bilidade da impressão é satisfatória, nun­ca é necessária, nem é mesmo sempre útil. Mesmo no mundo e nos negócios tempo­rais, considera-se como um mau guia uma impressão viva de imaginação e de sentimentos que são seguidos contra motivos mais sólidos, motivos que entretanto não causam no momento a mesma impressão.

Para formar, pois, o seu juízo entre mo­tivos opostos que podem fazer agir, não se deve consultar o mais ou menos de vivacidade que os acompanha. Cumpre to­mar os motivos em si mesmos, comparar-lhes os inconvenientes e as vantagens, e fundar nisso o seu juízo, para se deter­minar a seguir aqueles em que for acha­do o verdadeiro, o sólido bem. Por esse juízo, renunciamos aos motivos maus, de­saprovamo-los; não nos detemos nos moti­vos naturais, não lhes damos nenhuma atenção: pela vontade independente das impressões sensíveis, só nos apegamos aos motivos sobrenaturais que, por um julgamento refletido, havemos reconhecido se­rem os únicos bons, os únicos úteis para a nossa verdadeira felicidade.

Mas, dirá alguém, parece-me que, em muitas ocasiões, ainda mesmo quando eu não tivesse em mira Deus, eu não deixa­ria de agir como ajo. É a minha razão ou a minha inclinação que me leva a este procedimento; e, por amizade a uma tal pessoa, eu faço o que não faria por todo o mundo. Não é então de recear que esses motivos naturais é que sejam os verdadei­ros motivos que me fazem agir?

Concebo que, nessa situação, se se con­ceder muito à própria imaginação, ficar-se-á na aflição sobre o motivo superior que se deve admitir para elevar a sua ação. Mas, se, por uma visão refletida, se der lugar ao juízo que reconheceu a supe­rioridade do motivo sobrenatural, e à re­ferência da ação a Deus, já não haverá dificuldade sobre a parte que essa rela­ção terá nessa ação. Esse juízo, adotado pela vontade, dá-la-á toda a Deus.

Porque, afinal, Deus é o autor da razão: por si mesmo, esse motivo não pode pôr nenhum defeito na ação. Ele não é oposto ao motivo sobrenatural de fazer a vonta­de de Deus; é-lhe conforme; e pode-se então pensar que seja necessário renun­ciar a essa razão que Deus nos deu, para agir em mira a agradar a Deus? Tanto melhor quanto, essa razão, muitas vezes é Deus quem a desperta; é um meio de que Ele se serve para vos fazer praticar o bem.

Não se trata, pois, senão de elevar essa razão por essa referência a Deus, seu au­tor; e de tirá-la da ordem natural, para, com o socorro da graça, colocá-la na or­dem sobrenatural, dirigindo-a para o Céu.

Os motivos naturais que não encerram nada de oposto à virtude não impedem que se possa e se deva oferecer a Deus as ações que deles dependem. Assim, quan­do, levantando-vos de manhã bem cedo, ides em jejum tomar a vossa refeição; quando, depois de passardes toda a manhã na oração e no recolhimento, ides alegrar-vos no recreio; ou quando, após a fadiga de uma jornada, ides tomar a vos­sa refeição, não tendes muitos motivos naturais que vos levam a essas ações? E esses motivos fundados na natureza vos impedem de oferecer essas ações a Deus, de elevá-las e de santificá-las por essa relação a Deus que vós lhes dais?

S. Paulo não ignorava os motivos na­turais que nos levam a tomar alimento (1 Cor 31, 10); entretanto ele nos exorta a fazer essa ação para a glória de Deus: não julgou que esses motivos naturais fos­sem incompatíveis com os motivos sobre­naturais. Aqueles não põem nestes ne­nhuma imperfeição, porquanto, por si mesmos, não são opostos a nenhuma vir­tude. No mesmo caso está aquilo que fa­zemos por amizade a alguém. Muitas ve­zes, nós fazemos pelo próximo coisas que Deus não manda, mas que também não proíbe. Mas, se agimos, Ele quer que a ação seja referida à Sua glória, como ao fim que nos devemos propor em todas as nossas ações.

Os pretextos para desanimar multipli­cam-se e sucedem-se. Sinto, diz alguém, que, se esses motivos naturais não me animassem, eu não faria o que faço e o que, no entanto, compreendo que Deus pede de mim.

Por que vos ocupardes com uma idéia que é uma verdadeira tentação? Por que a julgardes justa e bem fundada? Trata-se agora daquilo que faríeis se esses mo­tivos naturais não se apresentassem? É sempre perigoso supormo-nos em circuns­tâncias em que Deus não nos coloca, como já vos fiz notar alhures. Deveis, pois, dei­xar cair essa idéia, que é um ardil da ten­tação para vos desanimar, e para vos im­pedir de fazer o bem presente, fazendo-vos temer um mal incerto e futuro. Hoje trata-se unicamente de vos desobrigardes bem da ação que fazeis, seguindo as re­gras que a Religião prescreve. Aplicai-vos a isso pelo juízo refletido sobre a bon­dade dos motivos presentes, na firme con­fiança de que, noutras circunstâncias em que Deus possa colocar-vos, Ele vos ajudará por meio de graças proporcionadas às provações, consoante a Sua misericórdia e as Suas promessas. Essas razões, vós mesma as daríeis a uma pessoa que, de caráter manso e pacífico, servisse a Deus com facilidade, e que entrasse na descon­fiança e na aflição por não sentir a co­ragem de servir a Deus do mesmo mo­do se o seu caráter se tornasse vivo e fervente.

Entre os motivos que podem fazer-nos agir ao praticarmos obras boas em si mes­mas, há uns maus, opostos às virtudes cristãs: esses tornam as ações más, e mister se faz renunciar-lhes. Quanto ao respeito humano em particular, tenho vis­to muitas vezes almas na aflição, quando agem para não dar má edificação: re­ceiam então agir por força do respeito humano: é iludir-se grosseiramente sobre o valor dos termos, e confundir idéias bem diferentes. O motivo do bom exemplo es­tá bem distante do do respeito humano. O primeiro tem em vista a honra e a glória de Deus, que essa alma se propõe promover, evitando dar aos outros, pelo seu exemplo, ocasião de faltarem a Deus: este motivo refere-se, pois, a Deus; é bom, é louvável. Os maus exemplos são proibidos: dão aquele escândalo tão cla­ramente reprovado pelo Evangelho. Con­denando um, Jesus Cristo ordena-nos o outro: Ele quer que os homens vejam o bem que não podemos fazer em segredo, para que com isso glorifiquem o Pai ce­leste, e se animem a praticar o bem (Mt 5, 16).

O respeito humano, pelo contrário, não dá nenhuma atenção ao Criador. A cria­tura só a si procura naquilo que faz por esse motivo. Não quer agradar senão aos homens, cuja estima ambiciona, ou cuja censura teme. O respeito humano faz fa­zer o bem como o mal, segundo o gosto das pessoas a quem se quer agradar; e isso, não raras vezes, contra o próprio gosto e contra as próprias luzes.

São, pois, essencialmente diferentes es­ses dois motivos; e não é difícil distingui-los. Seria mesmo para desejar que o pri­meiro agisse com mais viveza: não se ve­riam então nas casas religiosas tantas irregularidades públicas e impunes, que tendem a abolir a regra em muitos pontos.

O que vos faz recear não agirdes senão por esses motivos humanos é que, quan­do eles não vos secundam, não agis como o fazeis quando eles vos sustentam. Para julgardes se há aí alguma razão de temer, examinai a disposição da vossa alma nes­sas circunstâncias. A vossa fidelidade de­pende sempre desses motivos? Se assim fosse, haveria alguma razão para temer.

Depende de outra causa? então a razão de temer cessa.

Quando, mais unidos a Deus por senti­mentos de piedade, o vosso espírito e o vosso coração estão num estado menos agitado pelas paixões, ou quando a visão de Deus vos fere mais vivamente, para não seguirdes as vossas inclinações ou pa­ra praticardes algum ato de virtude que não é de obrigação tão estreita obedeceis a Deus sem o socorro desses motivos hu­manos; ou, se eles se apresentam, e se são de natureza a serem rejeitados, vós os desaprovais, e, se eles não devem ser de­saprovados, vós os elevais pela relação a Deus: nem sempre esses motivos humanos são, pois, o móbil da vossa conduta.

Verdade é que, quando viverdes na dis­sipação e no esquecimento de Deus, tereis razão de crer que só os sentimentos da natureza, ou mesmo da paixão, é que ani­mam as vossas ações e as vossas iniciati­vas. Mas notai bem que isso não justifica o vosso receio, porquanto isso só vem desse estado de dissipação em que viveis, e que vos faz perder de vista tanto o vosso Deus, a quem vos deveis, como a vossa salva­ção, para a qual deveis trabalhar, e como as graças que recebeis e que não aprovei­tais. Enganamo-nos se julgamos que o que nos guia em certa situação da alma nos guia também em todas as situações em que nossa alma pode achar-se. Na dissipação e no recolhimento a alma não tem a mesma maneira de pensar. Vão é, pois, o vosso receio, e não deveis escutá-lo.

Aliás, se esses motivos que vêm da ra­zão e das virtudes naturais de amizade, de gratidão, de compaixão, etc. precedem na vossa mente e no vosso coração a visão distinta de Deus, por que haveríeis de fi­car alarmada com isso? Já vos fiz notar alhures que os objetos sensíveis excitam naturalmente os sentimentos que lhes são proporcionados: que essas virtudes natu­rais Deus os gravou nos nossos corações; elas não são, pois, opostas às virtudes que a Religião nos inspira ou nos ordena. Servem, antes, para introduzi-las em nos­sa alma. Colocam-nos num estado em que, achando no nosso coração, em vez de opo­sição, um pendor que nos leva à prática das virtudes, praticamo-las mais prazeirosa e mais facilmente. Não somos, pois, obrigados a afastá-las, a renunciar-lhes; devemos somente dar-lhes a perfeição que lhes falta, encarando-as em relação ao Céu, consoante os princípios da Religião. Ora, nesse estado, será tão difícil assim di­rigir a própria intenção à glória e ao be­neplácito de Deus, e ao cumprimento da sua vontade santa? Pelo contrário, tudo no-lo facilita.

O que deve consolar-vos e tornar-vos fiel a essa prática, é deverdes saber que a graça é uma luz que Deus nos dá para conhecermos o bem sobrenatural, um sen­timento que Ele nos inspira para praticar esse bem. Ela age em nós sem se fazer notar, e não nos dá nenhum sinal certo da Sua presença. Como a esperamos, presumimo-la quando a havemos pedido; de­vemos, pois, agir como se estivéssemos certos dela, embora não o estejamos, já que ninguém sabe se é digno de amor ou de ódio.

Dessa condição de Deus sucede podermos facilmente tomar por um efeito da nossa razão aquilo que é efeito da graça, graça que nos ilumina, que nos dá sentimentos que a razão aprova, que nos inspira refle­xões que nos levam à prática do bem. De sorte que aquilo que acreditamos pura­mente natural e fruto da sagacidade do nosso espírito, ou da bondade natural do nosso coração, é realmente efeito do so­corro sobrenatural que o Senhor nos deu.


Portanto, se então, para obedecerdes à lei, que vos obriga a referir tudo a Deus, vós Lhe ofereceis as vossas ações, a estas não faltará nada para obter a recompen­sa que lhes foi prometida. Elas serão feitas para Deus, pelo concurso da graça. Deus ser-lhes-á assim o princípio, como o fim e a recompensa. Não podeis, pois, en­ganar-vos oferecendo-as a Deus, visto que obedeceis a uma lei que Ele vos faz conhe­cer; e perdeis as vossas ações não lhas oferecendo, porque então já não é por Deus que agis. Esse oferecimento vós o fa­zeis em consequência da visão que Deus vos dá d’Ele e que vós seguis: não deveis, pois, recear mentir a Deus, fazendo aqui­lo que Ele vos inspira.

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