Tudo se renova em nós desde que encontremos no Filho de Deus uma juventude eterna. São João dá-nos a certeza: com o seu olhar de águia, olha para a fonte de toda a luz e diz-nos: «A vida manifestou-se e nós vimo-la, e damos dela testemunho, e vos anunciamos esta vida eterna, que estava no Pai e nos aparecem» (I João, I, 2). O discípulo amado comunica-nos o que viu com palavras simples e transparentes: dá-nos parte da verdade essencial, e todo aquele que vive dela vê abrir-se o caminho que leva às profundidades de Deus. As circunstâncias deste mundo só nos fazem parar se deixarmos de atentar no essencial. A razão humana, incapaz de se concentrar no único bem necessário às nossas almas resgatadas, não pode iluminar os caminhos interiores: só a fé os descobre, numa confissão sincera da nossa total impotência. A humildade fiel faz brotar todas as fontes da graça. Desde o momento em que deixamos de lhe vedar a entrada na nossa alma pelo pecado, a claridade divina irrompe por todo o nosso ser: a sua medida não é a mesma que a nossa, e a sua liberdade infinitamente generosa é o segredo de Deus. «Eu terei misericórdia com quem me aprouver ter misericórdia; e terei piedade de quem me aprouver ter piedade» (Rom., IX, 15). - «Deixei que me encontrassem os que não me procuravam; mostrei-me aos que não me buscavam» (Rom., IX, 20).
Porque foi que Ele nos escolheu, porque foi que nos preferiu a milhões
de outras pessoas? Esta graça só pode ser o sinal dum amor imenso. «Foi
por amor que ele nos predestinou para sermos seus filhos adotivos por
meio de Jesus Cristo, por sua livre vontade» (Éfes., I, 5). Este Pai que
nos deu o Seu Filho poderá na verdade recusar-nos alguma coisa? «O que
não poupou nem o seu próprio Filho, mas por nós todos o entregou à
morte; como não nos dará também com ele todas as coisas?» (Rom., VIII,
32).
O Filho ofereceu o Seu sangue e a Sua vida: poderia porventura
dar-nos prova mais perfeita do Seu amor? E entre os bens do Seu próprio
coração deu-nos a Sua Mãe bem-amada, aquela que o anjo louvou pela Sua
fé, para que Ela nos transmitisse todas as riquezas da graça. E apenas
nos pede em troca que acreditemos nEle e no Pai, que acreditemos na
virtude do Seu preciosíssimo sangue derramado por nós, no valor dos Seus
sacramentos, na vida da Igreja, Sua esposa, e no poder da oração. «Se
pedirdes a meu Pai alguma coisa, em meu nome, ele vo-la dará; pedi e
recebereis, para que a vossa alegria seja perfeita» (João, XVI, 23-24).
Por mais fracos e miseráveis que sejamos, temos um caminho
aberto e seguro; para curar a nossa alma, é-nos oferecido um remédio
sempre eficaz: a oração. Deus conhece as nossas necessidades, mas espera
de nós o pedido humilde e a imploração do Seu socorro. Precisamos de
orar! Não como uma torrente de palavras, mas com o mais simples impulso
interior: invocar o nome de Deus com confiança durante o trabalho
quotidiano pode ser o suficiente. O que importa é a vontade filial de
nos apoiarmos no Pai e o esforço suavemente insistente para elevar para
Ele uma oração cheia de fé: esta perseverança toca infalivelmente o
coração de Deus. «Pedi e recebereis procurai e encontrareis; batei e
abrir-se-vos-á» (Mat., VII, 8). Nada resiste à alma que confia no amor
do Pai: Ele próprio deve ceder à esperança fiel, ao abandono que invoca a
Sua bondade infinita. O próprio Espírito nos inspira esta conduta e nos
revela estes segredos de poder e de amor. «É Deus que opera tudo em
todos: é um só e o mesmo Espírito que opera estes dons, repartindo a
cada um como quer» (I Cor., XII, 6-11).
Ele não fala em feitos sobre-humanos nem em cuidados
torturantes, mas em recolhimento, em verdade interior, em humildade e
doçura, e principalmente em confiança e abandono filial. «Não vos
aflijais, pois... O vosso Pai celeste conhece as vossas necessidades.
Buscai, pois, em primeiro lugar, o reino de Deus e a sua justiça, e tudo
o resto vos será dado por acréscimo» (Mat., VI, 31-33).
A timidez espiritual, forma insidiosa e disfarçada do
amor-próprio, só é desmascarada e repelida pela luz da graça. O despeito
de nada poder nem valer coisa nenhuma transforma-se em gratidão:
torna-se evidente que devemos entregar-nos ao próprio Deus. Entramos
assim nas relações perfeitas que devem unir a criatura perdida e o
Salvador que a encontra e a resgata: somos beneficiários sem mérito
nenhum da nossa parte, enquanto Ele é o doador e o dom inestimável. «Que
tens tu que não recebesses? E se o recebeste, porque te glorias como se
o não tiveras recebido?» (I Cor, IV, 7).
O nosso vil ardor em procurar a consideração e as boas graças dos
homens tem como fonte a nossa falta de interesse pelas maravilhas que a
graça quer operar em nós e a nossa cegueira perante a dignidade de
filhos de Deus. O ciúme e a ambição que envenenam a vida do homem não
têm outra raiz senão o desconhecimento dos seus privilégios divinos: o
orgulho e a vaidade não se apoiam num apreço exagerado, mas num apreço
irrisoriamente insuficiente por aquilo que é nosso, se o quisermos
aceitar. Há um sentimento de inferioridade que é um insulto para Deus e
um grave perigo para a alma. A psicanálise fala do recalcamento dos
instintos mas desconhece a recusa das inspirações divinas, cujos efeitos
são infinitamente mais nocivos para o ser racional. É este complexo que
leva a alma a dobrar-se sobre o mundo material, depois sobre si mesma
e, por fim, a atrofiar-se. Urge arrancar esse germe da morte que é o
desprezo do nosso verdadeiro destino e do dom de Deus. «Despojai-vos sem
demora da vossa vida passada, do homem velho corrompido pelas paixões
enganadoras; renovai-vos no espírito do vosso entendimento: revesti-vos
do homem novo, criado segundo Deus na justiça e na santidade
verdadeiras» (Efés., IV, 22-24).
Devemos obedecer e submeter-nos: é a lei de toda a criatura
enquanto não está incluída na ordem da graça, mas a mensagem de salvação
que nos é dirigida é o remédio para todas as formas de miséria.
Aprendamos a viver segundo o exemplo do Espírito: se isso parece uma
escravatura aos homens que não conhecem a chave do seu ser, nós sabemos
que é nisso que consiste a mais pura liberdade. «Não recebais em vão a
graça de Deus, pois Ele diz: Eu te ouvi no tempo aceitável e te ajudei
no dia da salvação» (II Cor., VI, 2).
Mas se na verdade somos privilegiados, a gratidão obriga-nos,
desde que tenhamos disso consciência, a confessá-lO diante de todos.
Quando Deus é acusado e ofendido com blasfêmias por causa dos males que
os erros dos homens atraíram ao nosso mundo, é a nós, que somos Seus
filhos, que compete louvá-lO pela Sua bondade e misericórdia infinitas.
Está em jogo a honra do nosso Pai, que está sendo constantemente
desconhecido e ofendido. Esta idéia é um tormento, mas é também uma
faúlha que ateia a alma e a incita a dar-se totalmente. Ele quer, pelo
menos segundo as suas forças, dar glória a Deus por toda a criação. Não
há paixão mais nobre nem mais ardente ao que esta impaciência filial em
prestar ao Pai as honras que Lhe são devidas, por agir e sofrer, por dar
a vida para que Ele receba o que os outros Lhe recusam. Uma tal
prodigalidade é uma riqueza infinita: é neste sentido que se diz: «A
todo o que tem dar-se-lhe-á e terá em abundância mas ao que não tem,
tirar-se-lhe-á até o que parece ter» (Mat., XXV, 29).
(Um cartuxo anônimo Intimidade com Deus)
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