A verdadeira e única alegria do coração é fim e objeto querido e
agradável todos igualmente. Aos que vivendo em perfeição seguem Cristo, e
àqueles que ainda escravos da vaidade amam o mundo. Com uma única
diferença, porém, que onde os primeiros acertam a eleição prudente dos
meios, os segundos erram bisonhamente e com grande prejuízo. Qual é
pois, o verdadeiro caminho para atingir a verdadeira alegria?
1. - A felicidade do mundo é coisa vã
Antes, vejamos o caminho dos mundanos. Eu penso que por juízo comum do
mundo toda delícia, toda alegria consista naqueles bens seculares já
enumerados pelo salmista, isto é, saber falar bem das coisas do século e
ter aptidão para conduzi-las; arrebatar ou comprar honrarias, e debaixo
de um falso preço enriquecer; gloriar-se nos florescentes anos da
própria juventude; estimar a beleza
do corpo, orná-lo, enfeitá-lo quase como um templo; ter cheios e
abarrotados os celeiros; nutrir gordos e fecundos os rebanhos nos
estábulos; as terras, os palácios bem ordenados e bem fornecidos de
tudo; nada de prantos, de luto, de gemidos, mas no curso próspero de sua
felicidade não ser perturbado por nenhuma adversidade; estas são as
alegrias do mundo: "Feliz o povo agraciado com tais bens" (Sl 143, 9
-15).
Mas o Espírito do Profeta sabe quanto seja falsa essa opinião de
felicidade e por isso, para desengano de todos, acrescenta logo a sua
opinião: "Feliz o povo cujo Deus é o Senhor" (Id 15). Eis onde está a
verdadeira fidelidade, enfim viver segundo Deus. Esta sentença é
repetida nas Escrituras.
2. - A verdadeira felicidade consiste na virtude
Feliz o homem que não procede conforme o conselho dos ímpios, não trilha
o caminho dos pecadores. Feliz o homem a quem ensinais, Senhor, e
instruís em vossa lei. Felizes aqueles cuja vida é pura, e seguem a lei
do Senhor. Felizes os que caminham com pés imaculados no caminho dos
mandamentos divinos. Felizes os que confiam em Deus. Feliz o homem que
teme o Senhor (Sl 1, 1; 93, 1; 2,13; 111,1).
E assim não se encontra nas sagradas Escrituras ser chamado de feliz
quem é muito rico, quem é resplandecente por nobreza de nascimento ou de
amizades, quem é circundado de glória, quem vive em comodidades e
delícias; mas antes encontramos chamados de felizes no Evangelho os
humildes, os mansos, os que choram, que padecem perseguições por causa
da justiça (Mt V, 3, 4, 5, 10). Tanto é verdade que só a vida bem
ordenada segundo a lei divina é feliz, e que só a virtude - embora
áspera e destituída de alegrias externas e de honras, mas circundada
ainda
de tribulações - é agradável, contente, alegre.
3. - A verdadeira felicidade consiste no testemunho da consciência tranqüila
Se vocês olharem os frutos de algumas árvores, são de cor e aparência
indeterminadas; se vocês os provarem são deliciosos ao paladar; porém a
raiz da qual provém tanta beleza e doçura jaz debaixo da terra feia aos
olhos, muito amarga para o gosto.
Assim - diz S. João Crisóstomo - a tristeza de quem vive segundo Deus é
para produzir suavíssimos frutos de alegria. Sabem muito bem, por
experiência, os que se afligiram por algum tempo para arrepender-se das
próprias faltas, e choraram com muitas lágrimas na oração diante de
Deus. Purificaram sua consciência (2); e quem sabe dizer a alegria que
daí provém? "Esta é a nossa consolação, o testemunho da boa consciência"
(2Cor 1, 12). E em outro lugar a Escritura compara
a alegria de uma boa consciência com um "perpétuo festim" (Pr 15, 15).
Da consciência bem limpa surge a boa esperança. E se os que esperam ser
herdeiros de muito dinheiro, ou de rica posse, ou de algum principado,
são tão alegres na sua esperança: quanto mais não deveria ser a alegria
de uma alma que espera com bem fundada confiança a herança de um reino
eterno, celeste! Se pois esta alma eleva os olhos para o céu, e a Fé lhe
mostra as grandes honras, as sobre humanas riquezas, as puríssimas
alegrias daquela pátria feliz, a Esperança logo no
seu coração responde: E estes bens são tidos para mim, aliás são meus. Quanto conforto! Quanto júbilo! Quanta exultação!
4. - A verdadeira felicidade perdura também na falta de toda alegria terrena.
Se nós mantivermos bem em ordem nossa vida, gozaremos também uma doce,
tranqüila, perpétua alegria, que nem mesmo as tribulações externas
no-las poderão tirar, mas que permanecerá sempre igual mesmo na falta de
toda alegria terrena. Pois já não são as coisas fora de nós, ou
prósperas ou adversas, que nos consolam ou nos afligem, mas sim as
internas disposições do espírito.
E como quem tem o corpo enfermo ou febricitante, quer repousem em macios
leitos, ou sentem em tronos preciosos, ou passeiem por jardins amenos,
ou sentem se em mesas lautas com músicas suaves, daí não tira alegria,
mas tristeza; enquanto quem tem saúde dorme feliz mesmo sobre duro
colchão, mesmo numa mesa pobre come com sabor e com gosto; assim também é
na alma e muito mais; assim se quisesse viver alegre, como se estivesse
são, estando doente, não posso: mas posso bem curar a alma a fim de
alegrar-me.
5. - A felicidade de quem se abandona em Deus
"Eia, pois, - prossegue S. João Crisóstomo (3) - dai-me um homem que não
tenha em si nada que o condene, mas certo de sua boa consciência,
aspire com fervor coisas futuras, aguardando a feliz esperança: que
poderá haver - pergunto eu- que possa contristá-lo?"
"Não parece que a morte seja a coisa mais intolerável do mundo? Mas a
expectativa da morte não o contrista, antes o consola; pois sabe que a
morte é a libertação das atuais fadigas, o caminho para chegar à coroa e
aos prêmios preparados para quem luta pela virtude".
Talvez a morte prematura dos filhos o entristecerá? Ele aceitará com
ânimo forte também esta e dirá com Jó: "O Senhor deu, o Senhor tirou;
como lhe agradou foi feito; bendito seja o nome do Senhor" (Jó 1, 21).
Pois se nem a morte, nem a perda dos filhos o podem entristecer, muito
menos a perda das riquezas poderá golpear esta alma generosa.
Cai enfermo? Pois bem: ouça ainda o sábio que adverte dizendo: "Na
doença e na pobreza, confia em Deus. Pois é pelo fogo que se
experimentam o ouro e a prata, e os homens agradáveis a Deus, pelo
caminho da humilhação" (Eclo 2, 4 -5).
6. - Um exemplo
Chega de raciocínio, de hipóteses. Vamos ao fato, no qual não só se entende,
se vê, mas se apalpa.
Conta S. Gregório (4) que no seu tempo havia em Roma um homem chamado
Sérvulo, bem conhecido por ele e por seus ouvintes, pobre a ao mesmo
tempo enfermo, quase moribundo pela delonga da doença. Pois desde os
mais tenros anos até o fim da vida permanecia paralítico com grandes
dores. Não podia ficar de pé; não podia nem mesmo levantar-se e
sentar-se na cama; não podia virar para nenhum lado. Que mais? Não podia
nem mesmo levar a mão à boca para comer. Mas precisava que a mãe ou o
irmão o alimentassem quando voltavam para casa depois de haver procurado
para si e para ele um pedaço de pão ou algum dinheiro por esmola.
Eis compendiadas num só homem as maiores calamidades desta vida. Quem
poderia acreditar que em tal estado pudesse haver alegria e satisfação?
Porém ouçam. Ele não sabia ler, mas economizando algum dinheiro a custo
de sua fome, comprou livros da Sagrada Escritura; e quantos religiosos
apareciam em sua casa pedia-lhes que lessem para ele sem interrupção. E
aconteceu que, quanto permitia sua capacidade, aprendeu totalmente a S.
Escritura. Era esta, pois, a sua ocupação
dia e noite no meio de suas dores: cantar salmos, hinos, louvores, e ações de graças a Deus.
Oh Deus! Imaginem quanta doçura, quanta alegria passava do coração à
língua, que transformava em louvor também aquele ponto em que as dores a
estimulavam a reclamações, e convertia em dulcíssimo mel de alegres cantos o amaríssimo fel de tantas tristezas.
Chegando, portanto, o tempo que Deus queria remunerar tal virtude
daquele seu servo, e sentindo-se ele aproximar-se da morte, convidou
algumas pessoas que se encontravam em sua casa a cantar Salmos com ele à
espera da passagem. E enquanto ele embora moribundo cantava com eles,
de repente elevando a voz com um forte grito interrompeu a salmodia
dizendo: "Calem-se! Não ouvem quantos louvores ressoam no Céu?" E
prestando atenção no coração àqueles louvores que ouvia lá dentro de si,
sua bela alma libertou-se do corpo. Mas ao sair espargiu naquele lugar
tanto perfume que todos os presentes ficaram cheios de inestimável
suavidade: sinal claro que no meio daqueles louvores aquela alma bendita
já estava no Céu. E certamente era bem digno de ser agregado ao coro
dos cantores celestes aquele que na vida tinha sempre emulado o fervor, a
alegria, o espírito, cantado como um anjo, sem descanso, os louvores de
Deus.
7. - Sigamos a virtude se desejamos ardentemente a verdadeira alegria.
Sigamos a virtude, se desejamos ardentemente a verdadeira alegria.
Harmonizemos bem nossa vida, e jamais nos faltará uma sólida, estável
alegria, que as adversidades do mundo não nos poderão nem tirar nem
diminuir. Limpemos bem a nossa consciência, e com este bom testemunho
não só viveremos dias tranqüilos, pacíficos, alegres, mas mesmo no
terrível momento da morte - no qual a vã alegria do mundo se transforma
em luto assustador - não tendo nós que temer, se robustecerá a nossa
segurança, a nossa alegria será redobrada. E aos breves e felizes anos
passados aqui na terra, se ajuntarão séculos eternos de total alegria na
própria satisfação de Deus.
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