sábado, 4 de fevereiro de 2017

III- PRINCÍPIOS DOS ESCRÚPULOS


CAPÍTULO III
PRINCÍPIOS DOS ESCRÚPULOS

Se tomarmos a tentação do escrúpulo separada do consentimento, achamos que ela deve a sua origem a vários princí­pios; às vezes vem de nós mesmos, do nos­so próprio fundo, de um princípio inte­rior e natural, e às vezes vem de fora, de um princípio exterior e violento, do de­mônio; outras vezes, enfim, vem do alto, pela permissão do próprio Deus.



1.º- O nosso próprio fundo é, muitas ve­zes, a única fonte do escrúpulo, que nas­ce ora de um temperamento frio, me­lancólico e naturalmente disposto à dú­vida e ao temor; ora de um temperamen­to fleumático ou de uma imaginação de­masiado viva, ou de fragilidade ou de pe­quenez de espírito; de uma falsa idéia que se forma de Deus, de Sua justiça, da Sua conduta para com as Suas criaturas; às vezes, de austeridades demasiadamen­te grandes, da frequentação de pessoas escrupulosas; não raro, do orgulho, que produz a obstinação; outras vezes, da ig­norância, que resiste àquilo que ela não sabe; da leitura de livros teológicos ou demasiadamente eruditos, que só deixam no espírito aquilo que pode embaraçar, embora lisonjeando o amor-próprio que pretende compreender tudo e tudo sa­ber. O escrúpulo vem também da falta de discernimento entre o pecado mortal e o pecado venial, entre o pensamento e a re­flexão, entre a inclinação e a vontade, entre a negligência e o consentimento; vem, muitas vezes, de um grande esquentamento de cabeça que dá uma tensão forte às fibras do cérebro, e que com isso torna a pessoa susceptível de diversos mo­vimentos, de diversos pensamentos confu­sos; ou vem da timidez natural, que facilmente se alarma, ou da vivacidade da imaginação, que pinta vivamente tudo o que se receia, ou, enfim, de um desejo excessivo de certeza naquilo que concerne à salvação.
2.º- A tentação do escrúpulo vem, não raras vezes, de um princípio exterior e vio­lento, quero dizer, do demônio. É o sen­timento de Santo Antonino, de Cajetan e de todos os teólogos. Isso sucede princi­palmente quando a pessoa escrupulosa não tem os defeitos naturais de que acabamos de falar, mas, ao contrário, tem o espírito bom, esclarecido, e os humores bastante temperados. Os escrúpulos vêm também do demônio, quando empolgam uma alma com tal impetuosidade que ela não pode resistir, e quando lhe representam os objetos com uma vivacidade sobre-hu­mana. É esse um indício de um princípio extraordinário e violento; porquanto a na­tureza age mais brandamente e perma­nece senhora de si mesma quando quer. Se o inimigo das almas as aflige pelas tentações, é que quer fazê-las cair em todos os desregramentos que diremos ao falarmos dos maus efeitos produzidos pe­los escrúpulos.

3.º- Em certo sentido pode-se dizer que Deus é, às vezes, a causa dos escrúpulos, por isto que, tirando o bem do mal, se serve deles, numa conduta misericordiosa, para fazer progredir ou para castigar as almas. Sem dúvida, Ele não é o princípio e o autor das nossas ilusões; mas, por vistas reservadas à Sua suma sabedoria, Ele não dá as luzes que as dissipariam. Por esta privação de luzes, Deus pune certas almas, faz-lhes expiar as suas infi­delidades, como vemos que Ele punia ou­trora os Egípcios enviando-lhes um espí­rito de aturdimento e de vertigem que os fazia errar em todas as suas obras e cambalear como um homem ébrio: Dominus miscuit in medio ejus spiritum vertiginis, et errare fecerunt Egyptum in omni ope­re suo, sicut errat ebrius et vomens (Is 19, 14).

Deus permite, principalmente, esta ten­tação para punir os soberbos; às vezes Ele sofre que potências cheias de luz e de capacidade para conduzir os outros se tor­nem cegas e incapazes de conduzir-se a si mesmas, e permite-o quer para man­tê-las na humildade, quer para lhes en­sinar, por sua própria experiência, a con­duta que devem seguir para com os ou­tros. Por esse meio, ainda, Deus reanima o fervor e o zelo nas pessoas tíbias, e dis­põe certas almas para as mais altas vir­tudes, porque esse estado as confunde, lhes faz perder a confiança em si mesmas, as coloca na trilha dos méritos, fazendo-lhes procurar, não as consolações de Deus, po­rém o Deus das consolações. Foi assim que Santa Teresa e tantos outros foram elevados ao auge da perfeição.

Deus serve-Se também dos escrúpulos, não como um remédio para curar o mal que já se fez, mas como um antídoto para prevenir o mal que se poderia fazer, con­soante o pensamento de S. Gregório sobre Job: Nonnunquam quisque percutitur, non ut praeterita corrigat, sed ne ventura committat. Era assim que Ele provava S. Paulo, com medo de que a grandeza das Suas revelações cansasse a este sentimen­tos de elevação.

Enfim, muitas vezes Deus Se serve dos escrúpulos como de um crisol para purifi­car nele ainda mais as almas, e para lhes aumentar o mérito, como muito bem o diz o célebre João de Jesus Maria, geral dos Carmelitas, no seu Tratado da Oração. É também o que S. João da Cruz confirma no capítulo quarto da sua Noite escura, onde diz: “Quando Deus quer admitir uma alma à perfeita união e à noite do espí­rito, fá-la passar por trabalhos espanto­sos: ora permite que ela seja afligida pe­lo espírito de fornicação, que ateia um fogo infernal na carne; ora pelo espírito de blasfêmia, que põe na boca palavras que a gente não ousaria pronunciar; ora pelo espírito de vertigem, que obscurece a alma por mil escrúpulos e perplexidades; o que, diz ainda o mesmo santo, faz um dos mais rudes aguilhões, um dos mais tristes horrores dessa noite”. Eis aí por que Deus permite que os Seus melhores amigos sejam às vezes atormentados por escrúpulos. Que este pensamento console as almas que passam a vida nessa espécie de purgatório; que as excite a suportar pacientemente essa provação.

Conquanto a tentação do escrúpulo ve­nha, as mais das vezes, do demônio, é no entanto verdadeiro que o consenti­mento no escrúpulo vem sempre do es­crupuloso; vem da sua imaginação viva e mal fortificada, que recebe sem distinção todos os fantasmas que se lhe apresentam, ao invés de rejeitar os que são con­trários à razão; vem do seu entendimento desregrado, que se conduz pelos movimen­tos de uma imaginação escaldada, em vez de conduzir-se pelas luzes da razão e da fé. Vem ainda do amor desregrado que ele tem a si mesmo; vem, enfim, de não sa­ber ele compreender os bons conselhos tais como os que daremos em falando dos meios de curar os escrúpulos.

Os escrúpulos de temperamento fazem-se ordinariamente conhecer por uma me­lancolia profunda, por uma timidez exces­siva em todas as coisas, por uma vã su­tileza que chicaneia sobre tudo, por uma obstinação, por uma teimosia que os faz sempre voltar às suas primeiras idéias, e que impede as melhores idéias de lhes repontar na mente; donde resulta uma grande indocilidade que não lhes permite render-se à verdade.

Conhece-se que os escrúpulos vêm do demônio por um negror particular que lhes aparece nos efeitos; eles arrefecem sempre a alma para o bem, e dão-lhe aversão a este; representam-lhe os seus males como incuráveis, e inspiram-lhe sentimentos de desespero; enfim, fazem-na cair numa estranha contradição consigo mesma, de sorte que ela se proíbe, como gravíssimas, coisas leves, e permite-se sem remorso outras, às vezes, muito criminosas.

Para reconhecer os escrúpulos que vêm de Deus, deve-se prestar atenção aos mo­tivos que os fazem nascer e aos efeitos que eles produzem. O motivo deles é um grande temor de ofender a Deus; e, em­bora esse temor exceda os limites, todavia parte de um bom princípio que, no fundo, é a caridade. Os seus efeitos são: um hor­ror mais sensível ao pecado, uma fuga exata das ocasiões, uma reforma sempre mais perfeita da vida passada, esforços mais generosos para avançar na virtude.



A duração desses escrúpulos, diz o au­tor da Ciência do confessor, não é, ordiariamente, muito longa: mal Deus vê que essas almas de escol estão bastante depuradas e que as uniu perfeitamente a Si, segundo a sua promessa Ele dissipa a tempestade que as agitava, e faz-lhes de­gustar uma calma profunda. Non dabit in aeternum, fluctuationem justo (Sl 54).

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