CAPÍTULO III
PRINCÍPIOS DOS ESCRÚPULOS
Se tomarmos a tentação do escrúpulo separada do consentimento, achamos que ela deve a sua origem a vários princípios; às vezes vem de nós mesmos, do nosso próprio fundo, de um princípio interior e natural, e às vezes vem de fora, de um princípio exterior e violento, do demônio; outras vezes, enfim, vem do alto, pela permissão do próprio Deus.
1.º- O nosso próprio fundo é, muitas vezes, a única fonte do escrúpulo, que nasce ora de um temperamento frio, melancólico e naturalmente disposto à dúvida e ao temor; ora de um temperamento fleumático ou de uma imaginação demasiado viva, ou de fragilidade ou de pequenez de espírito; de uma falsa idéia que se forma de Deus, de Sua justiça, da Sua conduta para com as Suas criaturas; às vezes, de austeridades demasiadamente grandes, da frequentação de pessoas escrupulosas; não raro, do orgulho, que produz a obstinação; outras vezes, da ignorância, que resiste àquilo que ela não sabe; da leitura de livros teológicos ou demasiadamente eruditos, que só deixam no espírito aquilo que pode embaraçar, embora lisonjeando o amor-próprio que pretende compreender tudo e tudo saber. O escrúpulo vem também da falta de discernimento entre o pecado mortal e o pecado venial, entre o pensamento e a reflexão, entre a inclinação e a vontade, entre a negligência e o consentimento; vem, muitas vezes, de um grande esquentamento de cabeça que dá uma tensão forte às fibras do cérebro, e que com isso torna a pessoa susceptível de diversos movimentos, de diversos pensamentos confusos; ou vem da timidez natural, que facilmente se alarma, ou da vivacidade da imaginação, que pinta vivamente tudo o que se receia, ou, enfim, de um desejo excessivo de certeza naquilo que concerne à salvação.
2.º- A tentação do escrúpulo vem, não raras vezes, de um princípio exterior e violento, quero dizer, do demônio. É o sentimento de Santo Antonino, de Cajetan e de todos os teólogos. Isso sucede principalmente quando a pessoa escrupulosa não tem os defeitos naturais de que acabamos de falar, mas, ao contrário, tem o espírito bom, esclarecido, e os humores bastante temperados. Os escrúpulos vêm também do demônio, quando empolgam uma alma com tal impetuosidade que ela não pode resistir, e quando lhe representam os objetos com uma vivacidade sobre-humana. É esse um indício de um princípio extraordinário e violento; porquanto a natureza age mais brandamente e permanece senhora de si mesma quando quer. Se o inimigo das almas as aflige pelas tentações, é que quer fazê-las cair em todos os desregramentos que diremos ao falarmos dos maus efeitos produzidos pelos escrúpulos.
3.º- Em certo sentido pode-se dizer que Deus é, às vezes, a causa dos escrúpulos, por isto que, tirando o bem do mal, se serve deles, numa conduta misericordiosa, para fazer progredir ou para castigar as almas. Sem dúvida, Ele não é o princípio e o autor das nossas ilusões; mas, por vistas reservadas à Sua suma sabedoria, Ele não dá as luzes que as dissipariam. Por esta privação de luzes, Deus pune certas almas, faz-lhes expiar as suas infidelidades, como vemos que Ele punia outrora os Egípcios enviando-lhes um espírito de aturdimento e de vertigem que os fazia errar em todas as suas obras e cambalear como um homem ébrio: Dominus miscuit in medio ejus spiritum vertiginis, et errare fecerunt Egyptum in omni opere suo, sicut errat ebrius et vomens (Is 19, 14).
Deus permite, principalmente, esta tentação para punir os soberbos; às vezes Ele sofre que potências cheias de luz e de capacidade para conduzir os outros se tornem cegas e incapazes de conduzir-se a si mesmas, e permite-o quer para mantê-las na humildade, quer para lhes ensinar, por sua própria experiência, a conduta que devem seguir para com os outros. Por esse meio, ainda, Deus reanima o fervor e o zelo nas pessoas tíbias, e dispõe certas almas para as mais altas virtudes, porque esse estado as confunde, lhes faz perder a confiança em si mesmas, as coloca na trilha dos méritos, fazendo-lhes procurar, não as consolações de Deus, porém o Deus das consolações. Foi assim que Santa Teresa e tantos outros foram elevados ao auge da perfeição.
Deus serve-Se também dos escrúpulos, não como um remédio para curar o mal que já se fez, mas como um antídoto para prevenir o mal que se poderia fazer, consoante o pensamento de S. Gregório sobre Job: Nonnunquam quisque percutitur, non ut praeterita corrigat, sed ne ventura committat. Era assim que Ele provava S. Paulo, com medo de que a grandeza das Suas revelações cansasse a este sentimentos de elevação.
Enfim, muitas vezes Deus Se serve dos escrúpulos como de um crisol para purificar nele ainda mais as almas, e para lhes aumentar o mérito, como muito bem o diz o célebre João de Jesus Maria, geral dos Carmelitas, no seu Tratado da Oração. É também o que S. João da Cruz confirma no capítulo quarto da sua Noite escura, onde diz: “Quando Deus quer admitir uma alma à perfeita união e à noite do espírito, fá-la passar por trabalhos espantosos: ora permite que ela seja afligida pelo espírito de fornicação, que ateia um fogo infernal na carne; ora pelo espírito de blasfêmia, que põe na boca palavras que a gente não ousaria pronunciar; ora pelo espírito de vertigem, que obscurece a alma por mil escrúpulos e perplexidades; o que, diz ainda o mesmo santo, faz um dos mais rudes aguilhões, um dos mais tristes horrores dessa noite”. Eis aí por que Deus permite que os Seus melhores amigos sejam às vezes atormentados por escrúpulos. Que este pensamento console as almas que passam a vida nessa espécie de purgatório; que as excite a suportar pacientemente essa provação.
Conquanto a tentação do escrúpulo venha, as mais das vezes, do demônio, é no entanto verdadeiro que o consentimento no escrúpulo vem sempre do escrupuloso; vem da sua imaginação viva e mal fortificada, que recebe sem distinção todos os fantasmas que se lhe apresentam, ao invés de rejeitar os que são contrários à razão; vem do seu entendimento desregrado, que se conduz pelos movimentos de uma imaginação escaldada, em vez de conduzir-se pelas luzes da razão e da fé. Vem ainda do amor desregrado que ele tem a si mesmo; vem, enfim, de não saber ele compreender os bons conselhos tais como os que daremos em falando dos meios de curar os escrúpulos.
Os escrúpulos de temperamento fazem-se ordinariamente conhecer por uma melancolia profunda, por uma timidez excessiva em todas as coisas, por uma vã sutileza que chicaneia sobre tudo, por uma obstinação, por uma teimosia que os faz sempre voltar às suas primeiras idéias, e que impede as melhores idéias de lhes repontar na mente; donde resulta uma grande indocilidade que não lhes permite render-se à verdade.
Conhece-se que os escrúpulos vêm do demônio por um negror particular que lhes aparece nos efeitos; eles arrefecem sempre a alma para o bem, e dão-lhe aversão a este; representam-lhe os seus males como incuráveis, e inspiram-lhe sentimentos de desespero; enfim, fazem-na cair numa estranha contradição consigo mesma, de sorte que ela se proíbe, como gravíssimas, coisas leves, e permite-se sem remorso outras, às vezes, muito criminosas.
Para reconhecer os escrúpulos que vêm de Deus, deve-se prestar atenção aos motivos que os fazem nascer e aos efeitos que eles produzem. O motivo deles é um grande temor de ofender a Deus; e, embora esse temor exceda os limites, todavia parte de um bom princípio que, no fundo, é a caridade. Os seus efeitos são: um horror mais sensível ao pecado, uma fuga exata das ocasiões, uma reforma sempre mais perfeita da vida passada, esforços mais generosos para avançar na virtude.
A duração desses escrúpulos, diz o autor da Ciência do confessor, não é, ordiariamente, muito longa: mal Deus vê que essas almas de escol estão bastante depuradas e que as uniu perfeitamente a Si, segundo a sua promessa Ele dissipa a tempestade que as agitava, e faz-lhes degustar uma calma profunda. Non dabit in aeternum, fluctuationem justo (Sl 54).
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