sábado, 14 de janeiro de 2017

ESFORÇOS QUE SE FAZEM PARA SER TOCADO SENSIVELMENTE; ESFORÇOS INÚTEIS, E NÃO RARO PERNICIOSOS, FONTE DE UM DESÂNIMO DESARRAZOADO.


Outra fonte de desânimo vem do fato de alguém se atormentar para ser tocado sensivelmente. Fazem-se para isso os maiores esforços. Imagina-se que, sem es­sa sensibilidade, não se pode ser agradá­vel a Deus: como se Deus fizesse questão de um sinal tão equívoco na piedade, e não sondasse o coração; como se Jesus Cristo, na maior desolação, no Horto das Oliveiras, não tivesse sido sempre infi­nitamente agradável a Seu Pai.


Nesse estado nada fareis, se vos esfor­çardes por vos elevar a mais além da graça que tendes. Bem longe de procurardes ser tocada sensivelmente, coisa que Deus não vos concede nesse momento, o que deveis é simplesmente ocupar-vos de Deus, se­gundo as graças que Ele vos faz. Se Ele quer manter-vos nas vistas da pura fé e nos sentimentos que elas excitam no co­ração pela via do raciocínio, não saiais dela enquanto o próprio Deus dela não vos tirar. Contentai-vos com aplicar à vossa conduta as verdades da Religião, as má­ximas da sua moral, para vos humilhardes diante de Deus das vossas infidelidades, e tomar as resoluções e os meios de evi­tá-las de então por diante. Deus receberá os vossos sentimentos, fortalecerá as vos­sas resoluções, recompensá-las-á por gra­ças as mais preciosas.
Eu faço tudo isso, dizeis vós, mas, fa­zendo-o, não sinto nada por Deus; pare­ce-me mesmo que, quando a boca exprime os sentimentos que eu ofereço a Deus, o coração não toma parte nisso. Sinto mes­mo, às vezes, elevarem-se-me no coração sentimentos opostos aos que eu quisera ter por Deus; e é isto o que me desconcerta, me abate, me desanima.

Examinai essa pena a sangue-frio, e lo­go sereis curada dela. Deus só pede sen­timentos verdadeiros. Para vos tranquili­zardes sobre os vossos, não é necessário que eles sejam acompanhados dessa sen­sibilidade que afeta o coração com tanta doçura e vivacidade; basta saberdes que esses sentimentos estão na vossa alma, isto é, na vossa razão, na vossa vontade; basta que os julgueis sinceros pela dispo­sição em que prometeis a vós mesma segui-los na prática. Os vossos sentimentos são então verdadeiros, sinceros; e serão sobrenaturais se Deus os fizer acompanhar da Sua graça.

Isto não deve parecer-vos singular. Agin­do com os homens, para lhes prestar ser­viço, quantas vezes não achamos senti­mentos verdadeiros que não são acompa­nhados dessa sensibilidade que experimen­tamos em agindo por um amigo? Quanta vez, mesmo, quando se trata de um ami­go, agimos sem gosto, sem atrativo, e mesmo com certa repugnância! E então já não há generosidade nos serviços que lhe prestamos? Na Religião, é esta a ins­trução que se dá às pessoas que dispomos para o sacramento da Penitência; dize-mo-lhes: não é necessário que a contrição seja sensível; basta que seja sincera, pela disposição em que a pessoa se coloca de viver melhor para o futuro.

A vossa aflição sobre a falta de sensi­bilidade é, pois, sem fundamento; e com­pletamente desarrazoado é o desânimo que a segue. Ao invés de vos ocupardes dela, deveis desprezá-la. O que então deveis fa­zer é recorrer a Deus e pedir-Lhe que acompanhe os vossos sentimentos com Sua graça, a fim de que eles se tornem so­brenaturais, e não careçam de nenhuma perfeição necessária para lhe serem agra­dáveis.A sensibilidade na devoção, no amor a Deus, na caridade para com o próximo, não depende de vós; não vo-la ordena o Senhor; não a exige de vós. Não podeis adquiri-la pela vossa indústria, pelos vos­sos esforços: outra razão, esta, que deve tranquilizar-vos quando não a sentis. Quando Deus a dá, temo-la sem esforços: quando não a dá, todos os esforços são inúteis. Atormentando-vos para excitá-la em vós, só fazeis é esquentar a cabeça pela contenção em que vos colocais; e, todo ocupada desse objeto, secais a devo­ção que a fé vos inspiraria, ao invés de reanimá-la. Segui o Espírito de Deus; aguardai que Ele vos previna, e não o previnais vós mesma senão pelas vossas orações.

Essa sensibilidade, que comove, que transporta, que põe no coração um vivo ardor que muita gente tem tido dificul­dade em sustentar, é uma dessas graças que ordinariamente são a recompensa da mortificação interior; graças sem as quais não se pode chegar à perfeição; graças que Deus dá e retira segundo os desígnios impenetráveis da Sua providência. Pode­mos pedi-la com confiança, recebê-la com gratidão; mas a humildade exige que a aguardemos sem pressa, que a frua­mos sem apego, e que estejamos sempre dispostos a fazer o sacrifício dela logo que Deus a reclame.

Bem certo é, pois, que, para agradar a Deus, para ter por Deus sentimentos ver­dadeiros e sinceros, não é necessário expe­rimentar essa sensibilidade, mesmo quan­do nos ocupando de objetos os mais ca­pazes de excitá-la. Ocupando-nos desses objetos, basta pormos o nosso coração na sincera determinação de preferirmos Deus a tudo aquilo que poderia fazer-no-lo per­der. Esses sentimentos de amor a Deus, pode a Fé fornecer-nos sempre os motivos para os excitarmos em nós, e eles são so­bejamente conhecidos para que eu vo-los deva relembrar aqui. Como esse amor é necessário para a salvação, Deus está sem­pre pronto a, pela Sua graça, ajudar-nos a produzi-lo, quando é com confiança que o invocamos.

Essa sinceridade de sentimento pelo qual o nosso coração se prende a Deus pela livre escolha da nossa vontade, é que nos torna agradáveis aos olhos d’Ele. Não há ninguém que, guiando-se pela fé, não possa descobrir na sua alma essa sin­cera determinação, pelos meios que ela está resolvida a empregar, segundo o Evangelho, para se colocar nessa disposi­ção e para nela se manter. Não pretendo possa ela estar absolutamente certa disso; mas terá provas bastante fortes disso, para não se perturbar com esse estado de secura, de tédio, de tibieza involuntária em que Deus a mantém, e para esperar que, pela sua misericórdia, Ele lhe tornará esse estado útil para a sua salvação.

E notai bem que uma alma que tem a maior sensibilidade de devoção, ignorando se essa sensibilidade vem da graça, não está mais segura do que vós de amar a Deus verdadeira e sobrenaturalmente. Nem por isso, pois, estaríeis mais adian­tada quando tivésseis essa devoção sen­sível que faz o objeto da vossa ambição, e cuja ausência vos perturba e vos desani­ma.

Também não deveis surpreender-vos de experimentar mais sensivelmente senti­mentos contrários aos que quereis teste­munhar a Deus: isso acontece em todas as tentações.

Os sentimentos das paixões são sempre mais vivos, mais afetuosos: degustamo-los mais facilmente, mais fortemente, porque eles nos levam a objetos sensíveis, ou mais conformes às inclinações da natureza, aos pendores do amor-próprio, ou, antes, é a propensão natural de nós mesmos que os excita. Essa sensibilidade vem do fundo da natureza; não precisa de socorro es­tranho.


Ao contrário, a sensibilidade nas coisas de Deus é efeito de uma graça que Deus nem sempre dá. Os sentimentos que a Fé produz, bem longe de terem essa propor­ção com a natureza e com o amor-próprio, contrariam-lhes todas as inclinações. Não é, pois, surpreendente que experimenteis sensibilidade nos primeiros, sem experi­mentá-la nos segundos, quando Deus não vo-la dá. Sem vos perturbardes nem vos assustardes, deveis, pois, comportar-vos, nesse estado de aridez, de desgosto, de repugnância, como o fazeis em todas as tentações. Depois de implorardes a mise­ricórdia de Deus, renunciai a esses senti­mentos que vêm estorvar a vossa união com Deus, desviai-vos deles por uma apli­cação mais forte aos motivos que vos le­vam para Deus, e também pelo exercício do amor de Deus, produzido na razão e na vontade muito mais do que nos sentidos, pela Fé e pela graça. Forçai a ten­tação a vos deixar em paz: tereis menos consolação, porém tereis mais méritos; e o mérito está muito acima das consola­ções.

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