quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

DA ESCOLHA DOS LIVROS DE QUE NOS SERVIMOS NA MEDITAÇÃO, E DO MÉ­TODO QUE SE DEVE SEGUIR NESSAS LEITURAS.


Para nos ocuparmos, na meditação, com o socorro dos livros, importa muito escolher bem os livros de que nos queremos servir, e seguir nessas leituras um método útil. Há livros que contêm meditações em que a alma se eleva, de alguma sorte, ao seio de Deus, perde-se nas Suas infinitas perfeições, e leva a sua vista às profun­dezas dos Seus mistérios. Esses livros não são próprios para uma alma que necessi­ta de socorro para se recolher. Só Deus pode fazer entrar nesta espécie de medi­tação; e, quando Ele a ela nos chama, entramos nela sem dificuldade. Uma alma que entrasse nela por si mesma, sem a isso ser atraída pela graça, extraviar-se-ia infalivelmente, e incidiria numa funesta ilusão. Não seria Deus quem a conduziria por essa trilha extraordinária; ela só seria guiada nela pelo orgulho e pela presunção. O amor-próprio, a vã estima de si mesma não tardaria a insinuar-se na sua oração, impedi-la-ia de tirar proveito dela, afas­tá-la-ia mesmo de Deus, ao invés de aproximá-la; ou, se ela agisse de boa fé, em breve a inutilidade dos seus esforços a lançaria no desânimo.


Falo, pois, aqui da meditação que está ao alcance de toda alma cristã. O fim da meditação é não somente esclarecer a mente sobre as verdades da Religião, sobre a extensão das nossas obrigações, mas é também excitar o coração a se apegar a Deus pelos sentimentos, e levá-lo à prá­tica das verdades que devem santificá-lo. Com efeito, de que serviria conhecermos os nossos deveres, se por motivos da reli­gião não nos aplicássemos a animá-los desse amor cristão que os faz cumprir em mira a Deus?
Portanto, um livro que só servisse para vos instruir, que não vos propusesse os motivos próprios para pôr o coração em movimento a fim de se prender às máxi­mas que ele propõe, não seria próprio para vos ocupar na meditação. Ordinariamente, a instrução não falta: o que falta é a determinação à prática.

Livros de meditação prática é que é pre­ciso empregar; ou então desses livros em que os sentimentos se juntam às reflexões, e fazem amar o dever fazendo conhecê-lo. Sem isso, perderemos a prática comum da meditação, e achar-nos-emos muito embaraçados quando quisermos por nós mes­mos refletir sobre as verdades da Religião, e tirar delas ou consequências práticas ou afetos para regular a nossa conduta; por­que não teremos acostumado a nossa men­te a esse método, servindo-nos de livros que não o propõem.

A meditação não é um estudo para se instruir, porém um meio de se determi­nar a viver santamente, pelos motivos que a Religião apresenta. Não basta ser escla­recido sobre as próprias obrigações, é pre­ciso que o coração se apegue a elas para agradar a Deus.

Se quiserdes tirar fruto desse santo exercício feito com o socorro dos livros, observai o não lerdes continuamente, sem nunca parar. A meditação e a leitura espiritual são exercícios bem diferentes: a meditação é feita para prender o vosso coração a Deus; nunca percais isto de vis­ta. O coração só se apega pelos seus próprios sentimentos. O que achais nos livros são as afetos, os sentimentos de outrem: não são os vossos. Portanto, se só fizerdes ler, lereis muitos sentimentos, mas senti­mentos que vos são estranhos. Eles ocupa­rão a vossa mente, mas o vosso coração não produzirá nenhum se não tiverdes cuidado de deter-vos para refletir sobre os motivos que vos são apresentados, e por este meio excitar o vosso coração a esses sentimentos salutares, e tornar-vo-los pró­prios produzindo-os por vós mesma.

Não nos santificamos pelo amor que ou­tro teve a Deus, e que lemos num livro, porém pelo amor que o nosso coração concebe, e que ele próprio testemunha a Deus.

O vosso coração sairá, pois, desse exercí­cio quase tão vazio como nele entrou, porque não terá produzido nada do seu pró­prio fundo. A meditação é obra muito mais do coração do que da mente. Uma medita­ção em que o coração não age, só apre­senta o exterior do edifício, que não con­tém nada dentro. E eis aí por que é que as pessoas que se servem de livros, e que só fazem ler, geralmente saem da sua meditação muito satisfeitas, porém quase tão pouco recolhidas como estavam antes. Saem dela sem haverem tomado nenhuma resolução de servir melhor a Deus. Nada tendo feito para se reformar, o coração torna a encontrar os seus pendores, e continua a entregar-se a eles. Da meditação corre ele aos divertimentos, aos quais não renunciou.

Lede, pois, se tendes muita dificuldade em estar recolhido na presença de Deus: lede em espírito de fé; e, quando achar­des alguma reflexão que podeis aplicar à vossa conduta, não a passeis de leve; apro­fundai-a, para gravá-la na mente, e para prender a ela o coração. Ela servirá para vos corrigir de algum defeito que ela mesma vos fará conhecer em vós; para vos firmar no amor de alguma virtude interior, que ela vos mostrará, para fazerdes uso dela nas ocasiões.

Mas sobretudo, quando no livro que me­ditais achardes algum bom sentimento, não vos contenteis com admirá-lo; tratai de vo-lo tornar próprio e pessoal. Numa santa confiança, em Deus, de que pela Sua misericórdia e pela Sua graça podeis elevarvos aos sentimentos perfeitos que tantos outros tiveram antes de vós, pren­dei-vos a eles durante algum tempo para excitar o vosso coração a produzi- los, não uma vez de passagem, porém várias vezes e de várias maneiras diferen­tes, pelos diferentes motivos que o Espíri­to Santo vos sugerir para animar o vosso coração; e não os deixeis enquanto eles vos ocuparem. Se a imaginação ainda se transviar, voltai à leitura; fazei-a sempre segundo o mesmo método, e sobretudo não vos esqueçais de que os livros não devem servir para favorecer a preguiça, mas sim para facilitar o recolhimento.

Se, pelo socorro dos livros, Deus vos der algum bom sentimento que vos prenda a Ele, ainda mesmo quando esse sentimento fosse diferente daquele que ledes, deixai o livro e segui esse sentimento; o Espírito Santo sopra onde quer.

O amor-próprio, que teme sempre o es­forço, talvez vos sugira que não deveis deter-vos então, apesar da luz de Deus; que é preciso ver se, continuando a ler, não achareis coisas que vos serão mais úteis. Guardai-vos bem de escutá-lo! Isso é uma astúcia do inimigo, que procura tornar-vos infiel à graça que recebeis, e que quer fazer-vos perder todo o fruto da vossa meditação.

As coisas que lemos, como as que ouvi­mos, só podem fazer no coração uma impressão salutar na medida em que Deus as acompanhar da sua graça. É Deus quem fala ao coração, e quem dá o incremento à palavra da salvação. Deveis, pois, ler e escutar em espírito de fé, de confiança e docilidade. Deus, que quis atrair-vos nes­se momento, talvez não tenha ligado a mesma graça às coisas em que a procurais, e a vossa infidelidade será causa de ser­des privada dela. Será por culpa vossa que a vossa oração não produzirá todo o bem que dela esperáveis. Aliás, a mesma tentação vos faria passar sobre as segun­das reflexões como sobre as primeiras. A vossa meditação não passaria de uma lei­tura mal feita, da qual nenhuma vanta­gem tiraríeis.

Se eu me detiver assim, dirá alguém, não terei tempo de percorrer todos os pontos da meditação.

Mas que necessidade há de os percorrer­des todos, se um só basta para vos ocupar? Por que deixardes um objeto que vos ocu­pa santamente, para procurardes outro que talvez não venha a vos ocupar do mesmo modo? Por que deixardes o certo pelo incerto? Seria seguirdes a incons­tância do vosso espírito, e não o espírito de Deus.

Nesse objeto que quereis abandonar achareis sempre duas coisas: ou algum defeito a combater, ou alguma virtude a aperfeiçoar, e um recolhimento de amor a Deus. A primeira servirá para vos corri­girdes sobre algum ponto, não raro im­portante; a segunda pôr-vos-á numa dis­posição mais perfeita de praticar todas as virtudes. O amor estende-se a tudo; e, se somos tão fraco e tão imperfeito, é por não amarmos bastante. Que mais po­deis procurar alhures?

Aproveitai, pois, da graça que Deus vos apresenta. Nunca deixeis o certo pelo incerto. Dai mais ao sentimento do que à reflexão. Quando o coração se apega a Deus, a mente ocupa-se d’Ele mais facilmente, e a imaginação se desgarra mais dificilmente. Enfim, é indubitável a má­xima: Para ir a Deus e ao Céu, segui a impressão de Deus, e guiai-vos pelo Seu Espírito. Se Ele parece abandonar-Vos, não percais ânimo: sede firme e constan­te. A esperança é um porto seguro con­tra as borrascas e as tempestades. Ainda quando estivésseis no fundo do abismo, Deus vos tirará dele pela Sua misericórdia. Em qualquer estado em que estejamos, nunca é permitido desesperar; e, apesar de todos os seus pretextos especiosos, o desânimo refletido e voluntário é tão de­sarrazoado quanto criminoso.

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