Levanta-se
a questão célebre — o que será mais útil e necessário: rezar pela conversão dos
pecadores ou pela libertação das almas do purgatório?
A
dizer a verdade, penso que não há escolha entre as duas obras. Ambas são
necessárias e não é possível que quem ame a Nosso Senhor possa ficar
indiferente à sorte de tantos miseráveis pecadores arriscados a se perderem
eternamente. Que zelo não precisamos ter pela salvação das almas remidas pelo
Sangue de Cristo! “Os pecadores estão arriscados a se perderem, e no caminho da
eterna condenação, dizem, e as almas estão já na segurança do céu. Sob este
aspecto parece mais necessária realmente a oração pelos pecadores. Todavia,
sabemos que a glória de Deus exige a libertação das pobres almas, almas
queridas, cuja sorte depende de nós somente. Que será delas sem nós? O pecador
abusa da graça, está no tempo de poder lucrar méritos e graças e não aproveita,
põe obstáculo aos nossos esforços, não aproveita muita vez o que fazemos por
ele. Pela opinião de vários autores piedosos e teólogos, e entre outros o rei
dos teólogos, Santo Tomás de Aquino com a sua autoridade de maior Doutor da
Igreja, afirma que Deus acolhe com mais fervor a oração
que Lhe fazemos pelos mortos do que a que Lhe dirigimos pelos vivos.
Eis
a razão porque às vezes não alcançamos graças por nenhum outro meio senão pelo
sufrágio das benditas almas do purgatório. Deus que tanto deseja a posse no
céu das almas queridas, abençoa mil vezes tudo quanto fazemos por elas. Santo Agostinho, outro Doutor da
Igreja, diz: “Nada há mais agradável ao Senhor que o
alívio dos fiéis defuntos”. E o grande orador sacro Bourdaloue o prova com sérios
argumentos: “Não há um apostolado mais belo, mais
meritório. É mais belo e mais meritório ainda que a conversão dos pecadores,
dos infiéis e dos pagãos”.
Trabalhar
pelas almas do purgatório é ter a doce certeza de que não trabalhamos em vão,
porque nada se perde de nossos sufrágios. Os pecadores resistem à graça. As
santas almas aproveitam todos os nossos sufrágios. No purgatório, diz o Pe. Faber, não se conhece a
ingratidão.
Tudo
será retribuído magnificamente um dia aos benfeitores.
O
mais prático, então, será trabalharmos com grande zelo pela conversão dos
pecadores, fazermos um bom apostolado, um generoso sacrifício para levar almas
a Nosso Senhor e oferecermos todos os méritos desta obra divina, desta obra de
caridade espiritual pelas almas do purgatório. Está solucionada a questão, sem
inúteis e sutis discussões. — O mais perfeito e o melhor, é trabalhar pela
conversão dos pecadores em sufrágio das almas do purgatório. E em nossas
orações fazermos a mesma coisa. Unir nosso grito de compaixão pelas almas
sofredoras, ao grito de compaixão pelos pecadores.
Uma
discussão célebre
São
Luiz Bertrão,
dominicano, celebrava frequentemente a Santa Missa pela conversão dos pecadores,
e raramente o fazia pelas almas do purgatório.
Um
dos Irmãos da Ordem lhe perguntou porque assim procedia.
—
Ora, meu irmão, as almas do purgatório têm já garantida a salvação eterna e os
pecadores, coitados, estão expostos à eterna condenação do inferno.
—
Sim, é verdade, responde o Irmão, mas, há outra consideração a fazer e bem
séria. Suponhamos que dois pobres vos pedem esmola. Um, é estropiado e
paralítico, absolutamente incapaz de se mover por si, não pode ganhar a vida,
é-lhe impossível trabalhar. O outro, ao invés, é moço, forte, está na miséria
e implora a vossa caridade. A quem dareis de preferência a vossa esmola?
—
Ao que não pode trabalhar... Responde o santo.
—
Pois bem, meu caro padre, as almas do purgatório estão neste caso. Nada podem
fazer por si. Para elas acabou o tempo da penitência e do mérito, da oração e
das boas obras. Dependem de nós, da nossa caridade. O pecador, neste mundo,
pode trabalhar para sua salvação, tem os meios e a graça à sua disposição. Não
vos parece, meu padre, que as almas do purgatório sejam mais necessitadas que
os pecadores, das nossas orações?
São
Luiz Bertrão meditou seriamente nas razões do Irmão
e dali em diante orava pelos pecadores, sim, mas veio mais em auxílio das
pobres almas do purgatório.
Realmente,
neste mundo o pecador pode trabalhar pela sua salvação e abusa da graça. É um
pobre que
necessita de esmola, sim, mas porque não trabalha. As almas são os pobres sem
ninguém por elas. Não podem mais lutar nem merecer como nós. Para elas passou o
tempo de lucrar. Estão entregues à Divina Justiça.
Todavia,
creio que nesta matéria só Deus pode julgar.
A
razão de Santo Tomás de Aquino é bem séria: os
sufrágios pelos mortos são mais agradáveis a Deus que os que fazemos pelos
vivos, porque aqueles se acham em mais premente necessidade e não podem se
valer a si mesmos.
Os
Santos que tiveram contato com o purgatório em revelações particulares,
puderam nos dizer o quanto sentiram a necessidade de orar e sofrer e sufragar
por todas as maneiras as pobres almas sofredoras. Não cometamos o erro de
abandonar a oração pelas almas, sob o pretexto de que os pecadores têm mais
necessidade e estão arriscados à condenação eterna.
Razões
para socorrer as almas do purgatório
Estas
razões são múltiplas e já as recordamos aqui em outros lugares. Sugerimos
algumas outras. A primeira, o amor de Deus. Se amamos a Deus não havemos de
querer vê-lo glorificado e amado cada vez mais pelos seus eleitos? Onde se
encontra a perfeição do Amor? No céu. Uma alma salva dá tanta glória a Deus e
vai para o seio do Amor eterno! Tudo que fazemos pelo nosso próximo glorifica a
Deus.
Nosso
Senhor mostrou o valor das obras de caridade quando disse que seria feito a
Ele mesmo o que fizermos ao próximo. Que maior obra de caridade que socorrer
as pobres almas, como já vimos na opinião de São Francisco de
Sales?
Ora, o que mais glorifica
a Deus é a alma na posse da eterna glória. Não é pois uma necessidade para
quem ama a Deus desejar ver mais amado no céu por algumas almas salvas do
purgatório? Se há muita alegria no céu quando se converte um pecador, há maior
alegria ainda quando um Justo entra na Glória. Eis mais uma razão para
trabalharmos pelas almas do purgatório — a glorificação dos eleitos.
E
depois a gratidão. Temos o dever de justiça e de gratidão para com os mortos.
Havemos de socorrê-los porque muitos deles são nossos pais, parentes, amigos,
súditos, e talvez muitos estejam sofrendo no purgatório por nossa causa, por
nosso mau exemplo, por algum escândalo que lhes demos. Só Deus sabe quanta
repercussão têm nossas faltas! Não é um dever orar pelos mortos? Cuidemos da
conversão dos pecadores, mas não nos esqueçamos deste dever de justiça e de
caridade. Dever muito mais grave do que estamos pensando.
Não
hesitemos — vamos dar nossas preferências ao sufrágio pelas santas almas,
embora nunca deixemos de orar, trabalhar e sofrer pelos pobres pecadores. E
demais, a devoção às almas é muito proveitosa e santificadora e concorre para
nosso proveito espiritual, nos santifica e nos torna mais aptos para rogar e
trabalhar pelos pecadores.
Tivéssemos
sempre o purgatório diante dos olhos e não viveríamos assim, na tibieza, no
orgulho, na sensualidade, numa vida espiritual tão relaxada!
Realmente,
quem pensa, quem medita seriamente na Justiça Divina dos tormentos da expiação
além-túmulo, vê, à luz das chamas do purgatório, como é horrendo o pecado, e
como é preciso ser puro, santo, e trabalhar nesta vida para obter o mérito das
boas obras e se preparar para a eternidade!
Exemplo
Salvo
pelas almas do purgatório
Nos
arredores de Roma vivia um moço cuja vida de escândalos e de pecados era bem
conhecida de todos. Todavia, o infeliz, apesar de tão pecador, conservava a fé
e não deixava a devoção de sufragar quanto podia as almas do purgatório.
Mandava celebrar Missas por elas, rezava e dava esmolas aos pobres nesta
intenção. Era a única prática de piedade em meio de tantos pecados.
Naturalmente, este moço com seu temperamento arrebatado e valentão, tinha
grande número de inimigos, e andavam estes planejando matá-lo em um momento
oportuno. Sabiam os inimigos que havia de passar ele pela estrada de Trivoli e
preparam-lhe uma emboscada. Ao se aproximar da estrada, numa encruzilhada
perigosa, a cavalo, deu com um pobre moço enforcado numa árvore. Era um
criminoso condenado à morte, cujo cadáver ainda pendia para escarmento dos
bandidos. O jovem tinha costume de nunca deixar de rezar pela alma de quantos
via mortos. Parou, desceu do cavalo, ajoelhou-se diante do cadáver e rezou por
aquela alma. Uma voz misteriosa se ouviu: desce e corre, porque te perseguem!
Assustado, desceu, correndo pela estrada. Os inimigos descarregaram as armas e
como viram o cadáver do enforcado caído, julgaram ser o jovem, e fugiram às
pressas.
Uma
voz se fez ouvir, então, ao jovem: meu amigo, aquela descarga deveria te matar
e lançar tua alma pecadora no inferno. A misericórdia de Deus te salvou pela
caridade que praticas para com as almas do purgatório. Elas te socorreram.
Muda de vida enquanto é tempo.
O
moço, todo contrito e sinceramente arrependido da sua má vida, resolveu deixar
o mundo; entrou numa ordem austera, fez penitência e levou vida santa até o
fim dos seus dias. — (Citado por Rossingnoli, 5.ª maravilha — e J. B. Manni,
Sacra Trig. Disc. 12.).
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