quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Humildade


A verdadeira humildade não consiste em desconhecer ou negar o bem que há em nós, mas em referir ao Autor de todo o nosso ser os dons da natureza e da graça que se dignou conceder-nos. Esta idéia foi admiravelmente expendida pelo Apóstolo naquela passagem da epístola aos Coríntios: «Esta confiança temos, por meio de Cristo, em Deus. Não que por nós mesmos sejamos capazes de ter algum pensamento que seja de nós mesmos: toda a nossa capacidade vem de Deus»[1]. E noutra parte diz: «Se alguém supõe que é alguma coisa, não sendo nada, a si mesmo se engana»[2].
E ainda noutra passagem deixou dito: «Aquele, pois, que se gloria, em Deus se glorie. Porque não é recomendável o que a si mesmo se recomenda, mas só aquele a quem Deus recomenda»[3].
Jesus Cristo ensinou-nos esta grande virtude por Sua vida e exemplos, assim como por Seus preceitos. «Aprendei de mim, disse Ele, que sou manso e humilde de coração»[4], palavras que Santo Agostinho assim comenta: «Nosso Senhor não diz: - Aprendei de mim a construir o mundo, a criar as coisas visíveis e invisíveis, a operar milagres, a ressuscitar mortos. - Mas diz: - Aprendei de mim a doçura e a humildade de coração».
Jesus nasce num estábulo; deixa-Se circuncidar como um pecador. Quando o povo deseja exaltá-lO e proclamá-lO Rei, afasta-Se e esconde-Se; mas quando resolvem humilhá-lO e perdê-lO, apresenta-Se à Seus inimigos e submete-Se aos opróbrios. A Sua transfiguração gloriosa assistem somente três discípulos, aos quais todavia impõe segredo até à Sua ressurreição. Já não se dá o mesmo com a suprema afronta da cruz. A esta assiste a cidade inteira de Jerusalém, que para mais regurgitava então de estrangeiros.
Depois da última ceia, o Salvador não Se dedigna de cingir uma toalha e lavar os pés a Seus apóstolos a quem deixa estar recomendação: «Sabeis o que acabo de vos fazer? Vós me chamais Mestre e Senhor. Tendes razão; eu o sou. Portanto, se eu lavei os pés, sendo vosso Mestre e Senhor, o mesmo deveis fazer uns aos outros: Dei-vos o exemplo para que, assim como eu fiz, façais vos também»[5].
Mas que humilhação poderá comparar-se à Encarnação do Salvador e à Sua morte afrontosa na cruz? «Nada façais por ciúme ou por vã glória, diz S. Paulo; mas, com humildade tenha cada um para si os outros como superiores e atenda aos interesses deles, que não à sua própria conveniência. Haja entre vós o sentimento que houve em Jesus Cristo: o qual, sendo Deus por natureza e não praticando, portanto, usurpação em mostrar-Se igual a Deus, todavia Se aniquilou, assumindo a natureza de escravo, fazendo-Se semelhante aos homens, sem que externamente coisa alguma o distinguisse do mesmo homem. Humilhou-Se e mostrou-Se obediente até à morte e morte da cruz. Pelo que Deus também o exaltou e lhe deu um nome que é superior a todo o nome: pois que ao nome de Jesus todo o joelho se dobra, no céu, na terra, e nos infernos, e toda a língua confessa que o Senhor Jesus Cristo está na glória de Deus Pai»[6].
Precisamos de incentivo mais poderoso para nos abatermos a nós mesmos? Não nos basta saber que quanto mais nos humilharmos por amor e justiça, tanto mais semelhantes nos tomamos a Jesus Cristo, o tipo por excelência da natureza humana?
De si mesmo disse o Senhor: «Eu não busco a minha própria glória; outro a buscará e esse fará justiça... Se me glorifico a mim mesmo não é nada a minha glória. Meu Pai é quem glorifica»[7].
Assim como Nosso Senhor se mostrava contente por a Sua própria glória ser reivindicada pelo eterno Pai, assim nos podemos ter a certeza de que nossa honra e bom nome estão seguros nas mãos da Providência.
A cada passo lemos no Evangelho que Nosso Senhor anatematizava o orgulho dos fariseus, condenava a ambição de seus discípulos e aproveitava todas as ocasiões para os precaver contra a vanglória e dar-lhes preciosas lições de humildade. Aos Judeus disse que o maior obstáculo, por eles posto à aceitação do Evangelho, era a paixão ardente, dos aplausos humanos: «Como podeis crer, vos que procurais a glória que vem dos homens, e nenhum cuidado tendes pela que de Deus vem?»[8] Noutro passo afirma que a simplicidade do menino e a humildade de espírito são as melhores disposições para receber as luzes celestes e tornar nosso entendimento apto para a apreensão das verdades reveladas: «Graças vos dou, meu Deus, Senhor do céu e da terra, porque escondestes estas coisas aos sábios e entendidos e as revelastes aos pequeninos. Sim, Pai; porque assim vos aprouve»[9]. Os dois filhos de Zebedeu, por intermédio de sua mãe, pediram a Nosso Senhor lhes obtivesse os primeiros lugares no seu reino terrestre que eles imaginavam cheio de pompas e esplendores: «Ordenai, dizia aquela mulher que os meus dois filhos, aqui presentes; sejam colocados em vosso reino, um à vossa direita e o outro à vossa esquerda». Ao que Nosso Senhor retorquiu, voltando-se para os dois pretendentes; «Não sabeis o que pedis»[10]. «O meu reino não é deste mundo». «O reino dos céus sofre violência e só os animosos o conquistarão» A prova evidente de que a inveja se agarra ao homem ambicioso como a sombra ao corpo, é que «os dez apóstolos, depois de ouvirem aquelas palavras, se indignaram contra os dois irmãos».
Não é, ainda hoje, procurada a intervenção de amigos ou de parentes para obter certas promoções eclesiásticas? E não será mais culpável esta ambição que a dos Apóstolos? Certamente que sim, porque não descera ainda então sobre eles o fogo purificador do Pentecostes.
Quando os primeiros padres da Lei nova discutiam entre si para averiguar qual deles era o maior, Nosso Senhor deu-lhes esta bela lição de humildade, corroborada já pelos Seus exemplos: «Os reis dos gentios dominam sobre eles e os que têm autoridade sobre eles apelidam-se benfeitores. Não há de ser, porém, assim entre vós outros: o que entre vós é o maior, faça-se como o mais pequeno, e o que governa seja como o que serve.
Porque, qual é maior: o que está sentado à mesa ou o que serve? Não é maior o que está sentado à mesa? Pois eu estou no meio de vós outros, como o que serve»[11].
Este texto faz compreender a maravilha a vacuidade da vanglória. Os apóstolos não procuravam saber qual deles era o maior em zelo, em virtudes, em boas obras, mas questionavam a supremacia nas honras e no conceito público. Bem podemos avaliar quanto é egoísta e insaciável o espírito de ambição e quanto magoaria a natureza sensível de Cristo aquela discussão entre os Apóstolos precisamente quando o Salvador acabava de lhes lavar os pés, algumas horas antes de sofrer morte ignominiosa. Não acontecerá hoje o mesmo? Os padres do nosso tempo são todos isentos dessa funesta emulação em obter lugares proeminentes e honoríficos? Quantas vezes não volvem olhares de cobiça para algum que está prestes a vagar, ainda mesmo enquanto se conserva entre a vida e a morte aquele que o ocupa!
Noutra ocasião perguntaram bruscamente os Apóstolos a Nosso Senhor «quem era o maior no reino dos céus?» E Jesus chama um menino, apresenta-o como modelo de humildade, porque ainda o não queima a febre de ambição, vanglória ou inveja, que agita e consome os corações orgulhosos e arrogantes, e assim lhes fala: «Em verdade vos digo que, se vos não converterdes e não vos tornardes semelhantes às criancinhas, não entrareis no reino dos céus. O que se humilhar e se fizer como este menino, esse será o maior no reino celestial»[12].
E que razões poderemos aduzir para justificar a nossa vã complacência e egoísmo? Que tens tu, ó homem, diz o Apóstolo, que não recebesses. E se tudo recebestes, porque te glorias como se não houveras recebido?»[13] Com efeito, não podemos arrogar-nos a propriedade absoluta nem a glória dos dons, que a Providência nós dispensou; apenas nos pertence o seu usufruto, e esse, muito efêmero porque andamos arriscados a perdê-lo a cada instante.
O animal de carga que transporta mercadorias preciosas, não tem, por esse motivo, mais valor, nem se gaba dessa condição como duma nobreza que lhe seja própria. Se fomos escolhidos para vasos de honra, essa eleição não há de constituir para nós motivo de vanglória, antes deve sê-lo de humilde gratidão.
Basta, enumerar os principais dons naturais e sobrenaturais, que recebemos de Deus, para da incerteza dos mesmos concluirmos imediatamente que poucos são os que exultam e se orgulham na posse deles.
Poderemos jactar-nos da nossa saúde ou da beleza física que a doença mais ligeira muitas vezes arruína e até faz desaparecer? Não será insânia comprazermo-nos em nossos talentos e perfeições intelectuais? Pois não é verdade que o espírito mais brilhante se sente mergulhado em trevas espessas, quando tenta penetrar em campos do saber vastíssimos, mas ainda insondados? Não acontece que, às vezes, uma pequena enfermidade, o priva da sua auréola fulgente, enquanto não chega a velhice que lhe rouba a energia e o paralisa, ou a morte que o apaga?
Quem faz caso da estima pública ou aceita os incensos da adulação? Só quem não sabe pela história ou pela própria experiência quanto é inconstante a aura popular e quão efêmeros e caprichosos são os aplausos dos homens.
Um grande prelado que, nos belos dias de sua vida, tinha palmilhado o caminho da glória e vira os escolhos das honrarias, que se aquecera ao calor de régios sorrisos e recebera as homenagens aduladoras dos homens, exclamava, ao ver o sol dá prosperidade esconder-se na orla do horizonte:

«Cromwell, I charge thee, fling away ambition;
By that sin fell the angels, how can man then,
The image of his Maker, hope to win by't? »[14].

Daria provas de grande presunção aquele que se gloriasse dos dons espirituais, esquecendo o triste fim dum Salomão ou dum Judas. Não se glorie o sábio no seu saber, nem se glorie o forte na sua força nem se glorie o rico em suas riquezas. Mas aquele que se gloria; ponha sua glória em me conhecer, diz o Senhor[15].
Assim como «o orgulho é detestável diante de Deus e dos homens»[16] assim a humildade é amada e querida do céu e da terra. Tão elevada é a estima desta virtude, tão grandes e poderosos são os seus atrativos aos olhos do próprio mundo, que todos desejamos passar por humildes, repelimos até a suspeita de altivez ou de soberba e, por maior que seja o orgulho em nós, procuramos dissimulá-lo com o véu da modéstia.
A humildade gera a alegria e a tranquilidade.
«Aprendei de mim, dizia Nosso Senhor, que sou manso e humilde de coração e em vossa alma reinará a paz»[17]. Wolsey só se voltou para Deus, no qual encontrou a paz e uma doce tranquilidade, depois que perdeu o favor do Rei e da Corte e se desvaneceram todas as suas esperanças de humana ambição:

«Cromwell. How does Your Grace?
Wolsey. Vhy, well;
Never so truly happy, my good Cromwell.
I know myself now; and I feel within me.
A peace above all earthly dignities.
A still and quiet conscience. The King has cured me;
I humbly thank his grace: and from these shoulders
These ruin'd pillars, out of pity taken
A load that would sink a navy, too much honor:
O’t is a burden, Cromwell, 't is a burden,
Too heavy for a man that hopes for heaven».[18]

Quando procuramos a causa de nossos desgostos e perturbações, quase sempre encontramos o desejo da estima ou o receio da humilhação. O que tem conhecimento profundo e claro de seu próprio coração e sabe defender-se contra uma ambição mórbida, não se perturba facilmente, ainda que lhe dirijam palavras injuriosas ou lhe retirem a estima: não o inquieta o pensamento de que outros o vêem um pouco como ele a si próprio se vê. A ausência de alguns sinais de respeito ou de algumas provas de deferência não o irrita, porque lhes não tinha amor desordenado.
A mansidão é irmã inseparável da humildade, e dos mansos disse Nosso Senhor: «Bem-aventurados, porque eles possuirão a terra»[19] de seu próprio coração.
Todos os homens têm uma sede insaciável de honra. Este desejo é universal; portanto não é ilegítimo, porque foi Deus quem no-lo infundiu no coração. O nosso erro, a nossa falta está em trabalharmos pela glória humana em vez de nos apaixonarmos pela glória divina. Ora só a humildade nos patenteia o caminho da verdadeira glória.
Na parábola do festim nupcial, Nosso Senhor deixa-nos entrever a proeminência gloriosa de que hão de gozar os humildes no banquete celeste do grande Rei: «Quando vos convidarem para um festim de núpcias, ide ocupar o último lugar, porque assim, quando chegar quem vos convidou, dir-vos-á: meu amigo, vinde mais para cima; e este convite será para vós motivo de glória perante os outros convidados. Todo o que se exalta será humilhado e todo o que se humilha será exaltado»[20]. Exemplo frisante é a Santíssima Virgem Maria: «Deus, disse Ela, olhou para a baixeza da sua serva e todas as gerações me chamarão bendita... Ele derrubou de seus tronos os grandes e exaltou os humildes»[21].
«Deus resiste aos soberbos e dá a sua graça aos humildes. Humilhai-vos, pois, sob a mão onipotente de Deus, para que Ele vos exalte no dia de sua visita»[22].
S. Paulo declara expressamente que a sublime glorificação do Homem-Deus que reina no céu acima dos anjos, dos arcanjos, dos principados e das potestades, acima de tudo que não é Deus, constitui a recompensa das humilhações profundas que sofreu por motivo da Encarnação, durante a sua vida mortal. «Humilhou-se e humilhou-se até à morte e morte de cruz e por isso Deus o exaltou e lhe deu um nome que está acima de todo o nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão no céu na terra e nos infernos, e toda a língua confesse que o Senhor Jesus está na glória de Deus Padre»[23].
No sermão da montanha o nosso divino Redentor manda-nos evitar toda a ostentação nas obras de piedade e de caridade e solenemente afirma que não podem contar com uma recompensa eterna os que praticam boas obras para atrair as atenções do mundo. «Guardai-vos de fazer as vossas boas obras diante dos homens para serdes vistos por eles; aliás não tereis recompensa junto de vosso Pai que está nos céus. Assim, pois, quando deres esmola, não toquem trombetas adiante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem honrados dos homens; em verdade vos digo, já receberam a sua recompensa. Mas quando dás esmola, não saiba a tua esquerda o que faz a tua direita, para que a tua esmola fique secreta; e teu Pai, que vê o que fazes em segredo, te recompensará. E quando fazeis oração, não sejais como os hipócritas, que gostam de orar em pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos dos homens; em verdade vos digo, já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando quiseres orar, entra no teu aposento e, fechada a porta, invoca teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê o que fazes em segredo, te recompensará»[24].


[1] II Cor., III, 4 e 5.
[2] Gal., VI, 3.
[3] II Cor., X, 17,18.
[4] Mat., XI, 29.
[5] João, XIII, 12-15.
[6] Fil., II, 3-11.
[7] João, VIII, 50-54.
[8] João, V, 44.
[9] Luc., X, 21.
[10] Mat., XX, 21-22.
[11] Luc., XXII, 25-27.
[12] Mat., XVIII, 2-4.
[13] I Cor., IV, 7.
[14] Crowell, conjuro-te que afastes para longe de ti a ambição. Foi este pecado que fez cair os anjos. Como pode, pois, o homem, imagem do seu Criador, alimentar a esperança de encontrar nela um meio de sair-se bem?
[15] Jerem., IX, 23, 24.
[16] Ecl., X, 7.
[17] Math., XI, 29.
[18] Cromwell.- Como está, Vossa Eminência? – Wolsey.- Muito bem; e até nunca me senti tão feliz, meu caro Cromwell; dentro de mim há uma paz muito superior a todas as grandezas da terra, uma consciência calma e tranquila. O rei curou-me; por isso lhe rendo humildes ações de graças. Por piedade tirou-me de cima dos ombros, pobres colunas em ruínas, um fardo que faria afundar um navio. Oh! Sim! Um excesso de grandeza é bem um fardo, Cromwell, um incomportável fardo para quem aspira ao céu”. (Shakspeare, Henry VIII).
[19] Mat., V, 4.
[20] Luc., XIV, 10-11.
[21] Luc., I, 48, 52.
[22] I Ped., V, 5,6.
[23] Fil., II, 8-11.
[24] Mat., VI, 1-6.
Fonte: A grande Guerra.

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