O sufrágio da esmola
Um socorro aos mortos dos mais valiosos é a esmola. Não é mister lembrar aqui o valor da caridade. É auxílio ao pobre na terra, alívio aos mortos nas chamas expiadoras do purgatório. Há tanta miséria a socorrer no mundo! Por que não fazermos do dinheiro, que perde tanta gente, um meio de salvação para nossa alma, e alívio do pobre e alívio do Purgatório? Não é conselho de Nosso Senhor que aproveitemos e façamos da riqueza meio de salvação empregando-a nas boas obras como os pecadores a empregam para o mal?
Socorramos o pobre em sufrágio das almas do purgatório.
Contam piedosos autores esta parábola tão expressiva: Um homem tinha três amigos. Dois lhe eram muito queridos. O terceiro nem por isso. Um dia fora acusado e levado ao Tribunal da Justiça. Chama os amigos para o defender.
O primeiro escusou-se. Tinha negócios e família, era impossível!
O segundo foi até à porta do Tribunal e o deixou.
O terceiro o acompanha sempre fiel, defende-o com ardor, dá testemunho de sua inocência e salva o acusado do castigo.
Assim, o homem tem neste mundo três amigos: o dinheiro, os parentes e as boas obras. O dinheiro o abandona na morte, quando há de comparecer no Tribunal da Justiça de Deus. Os parentes o levam até a beira da sepultura e o deixam; e o esquecem depois. O terceiro amigo — as boas obras, a caridade praticada, as obras de misericórdia, tudo quanto o homem fez de bom neste mundo, só isto o acompanha e o defende no Tribunal da Justiça de Deus.
Pois bem. Neste mundo toda sorte de boas obras sejam os nossos amigos. Tudo o mais falha. Diz São João que as obras do homem o hão de seguir depois da morte: Opera enim illorum sequntum illos.
Socorramos o pobre em sufrágio dos mortos. Praticaremos dupla obra de caridade. E tenhamos a certeza de que Aquele Deus de Misericórdia não deixará que se perca nossa pobre alma no Tribunal do Dia do Juízo.
Eis porque rezar pelos mortos, socorrer as almas do purgatório na prática da caridade pela esmola, é das maiores riquezas do cristão neste mundo.
A esmola, disse o Anjo a Tobias, salva o homem da morte, apaga os pecados e faz achar a graça diante de Deus[1]. O Livro Eclesiástico ensina que “assim como a água extingue o fogo mais ardente, assim a esmola apaga o pecado"[2].
Sim, e a esmola apaga também o fogo do purgatório.
Dai esmola ao pobre em sufrágio das benditas almas. As lágrimas que vossas esmolas enxugarem, o alívio que tiverdes dado aos que padecem fome, sede e frio, serão alívio no purgatório para as almas sofredoras, talvez almas de vossos entes queridos. É uma dupla caridade socorrer os pobres por amor das santas almas.
A esmola que salva
São João Crisóstomo faz este belo e poético elogio da esmola: “A esmola, diz ele, é uma celeste indústria e a mais hábil de todas. Protege os que a exercem. É amiga de Deus e está ao lado do Senhor e alcança facilmente a graça aos que ela ama. Quebra os ferros, dissipa as trevas, extingue o fogo... Diante dela se abrem com toda segurança as portas do reino do céu[3]”. Como se aplicam bem as palavras do eloquente e Santo Doutor à esmola dada em sufrágio para alívio e libertação das almas do purgatório! Nossa esmola ao pobre vai quebrar as cadeias de ferro e fogo que retém no purgatório as pobres almas, dissipa-lhes as trevas horríveis da ausência e da separação do Bem Infinito que tanto as faz sofrer naquele cárcere medonho. E diante da esmola, quantas vezes não se abrem com segurança as portas do reino do céu às pobres cativas! Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia, diz Nosso Senhor no evangelho.
Sim, sejamos agora misericordiosos para com os infelizes, os desgraçados, os pobres, e alcançaremos misericórdia para nós e para as almas do purgatório. Diz o Livro de Tobias: “As esmola livra de todo pecado e da morte, e não deixará a alma descer nas trevas"[4]. Sim, a esmola nos livrará da morte eterna, e, se nesta vida tivermos aplicado nossos recursos em socorrer os pobrezinhos, livraremos nossa alma da eterna morte, das trevas do inferno, e livraremos as almas das trevas do purgatório.
Pelas almas sofredoras tenhamos compaixão dos pobres.
Um dia, em Saint Lazare, São Vicente de Paulo ia dar a bênção à mesa frugal da comunidade dos seus padres, quando de repente sentiu-se profundamente comovido e as lágrimas lhe corriam pelas faces. Soluçava. O seu pensamento sentia-se agora transportado para a Lorreine, onde o povo tinha fome como nas províncias devastadas pela guerra. Ah! Dizia o Santo, lá há muita fome, muita fome...
“Ó, si nós soubéssemos meditar e ter compaixão daquelas pobres almas que têm fome de Deus! E Jesus, que na pessoa do pobre tem fome e sede, como nos diz no Evangelho, não sentirá também a fome das benditas almas? Tive fome e me destes de comer, estive doente e me visitastes. Jesus nos fala assim nas almas do purgatório[5]”.
“A esmola, escreveu o ilustrado Henri Bremond[6], é, no pensamento da Igreja, um dos elementos essenciais do culto dos mortos. Obra de caridade e de sacrifício eucarístico, o ágape primitivo reunia estes dois elementos. Muito antes de ter sido abolido, o ágape era uma espécie de reunião de beneficência para socorrer os pobres, visando obter por esta obra o alívio e a libertação das almas do purgatório. Os Santos Padres falam sempre nisto. Na Idade Média, esta idéia de socorrer os pobres para alívio das almas do purgatório teve uma influência decisiva na organização das obras de caridade”.
Dupla caridade
Podemos dizer: dar esmola em sufrágio e para alívio e libertação das almas do purgatório é dar duas vezes, é dupla esmola. Socorre os vivos e os mortos. Os amigos das santas almas não deixam esquecido este meio poderoso e meritório de praticar a caridade.
São Pedro Damião conta que, numa festa da Assunção de Maria, um homem de Deus teve uma visão. Viu na igreja a Santíssima Virgem num trono, cercada de Anjos e de Santos. Diante dela aparece uma pobre mulher em andrajos, em estado de grande miséria, mas trazendo sobre os ombros uma capa de seda e pedrarias ricas. Ajoelhou-se a pobrezinha diante da Virgem e entre lágrimas lhe disse: “Ó Mãe de misericórdia, eu vos suplico, tende piedade de João Patrizzi que acaba de morrer e sofre no purgatório. Sabei, ó Mãe de misericórdia, que eu sou aquela mendiga que um dia pedia esmola na porta da vossa basílica e tiritava de frio. João, a quem pedi uma esmola, privou-se da sua capa para me cobrir”. Ao ouvir isto, a Virgem Santíssima sorriu, cheia de bondade, e disse: “O homem pelo qual pedes misericórdia estava condenado a sofrer muito tempo na expiação, mas já que ele praticou este ato de caridade, e além disto sempre teve muita devoção para comigo, adornou meus altares, eu quero usar de bondade para com ele”. E Patrizzi foi logo libertado do purgatório[7].
Assim fará para conosco a Mãe de Deus, se juntarmos a sua devoção bem fervorosa à caridade para com os infelizes. É muito grande o mérito da esmola.
São João Crisóstomo aconselhava, numa exortação, uma maneira de aliviar o sofrimento da saudade dos mortos, de um filho querido que a morte arrebatou, de um ente, enfim, que vimos partir para a eternidade, deixando-nos saudosos. Diz o Santo Doutor: “Perdeste um filho querido e não sabeis o que fazer para testemunhar a vossa dor. Quereis ser útil ainda ao vosso filho? Nada mais simples. Assiste a um coerdeiro pobre. Tomai um pobre para socorrer. Dai aos pobres o que desejaríeis dar ao morto querido que chorais. Não tereis perdido o herdeiro do céu e arranjareis um coerdeiro na terra, que é o pobre. Em vez de uns miseráveis bens temporais que havíeis de deixar para um filho, lhe dareis a herança da posse de Deus no céu nos bens eternos. Eis como podeis socorrer vossos entes queridos muito mais do que se estivessem neste mundo[8]”.
Ordena a admirável e santa Regra de São Bento que quando morra um monge, durante trinta dias se ofereçam por sua alma o Santo Sacrifício e a ração de alimento que lhe pertencia seja dada aos pobres.
Que bela tradição! Sejamos caridosos para com os pobres da terra o apliquemos o mérito desta caridade para o alívio e libertação das santas almas sofredoras do purgatório. Pratiquemos a dupla caridade.
Exemplo
Esmola pelas almas
Cristovão Sandoval, ainda menino, era devotíssimo das santas almas do purgatório. Procurava socorrê-las de todos os modos. Privava-se até do necessário para sufragar as pobres almas sofredoras. Quando estudava na Universidade de Louvain, aconteceu que as cartas da Espanha demoravam a chegar com recursos e o pobre estudante ficou reduzido a uma extrema miséria sem ter do que se sustentar. Sempre que lhe pediam alguma esmola em nome das almas do purgatório, nunca a negava. Doía-lhe o coração ver pobres rogando: uma esmola por amor das santas almas do purgatório! Assim amargurado entrou numa igreja pensando: não posso socorrer as almas do purgatório com minhas esmolas, mas posso rezar por elas. Quero ajudá-las com minhas orações. Acabou de rezar e ao sair da igreja um moço muito educado e de ar nobre o veio cumprimentar, dizendo estar de volta da Espanha, e lhe entregava uma grande soma de dinheiro, porque quando voltasse à Espanha, seu pai lhe havia de pagar. Convidou-o para um almoço. Sandoval aceitou o generoso convite, pois até àquela hora nada havia comido. Depois, o moço desapareceu. Nunca mais Sandoval chegou a saber quem era aquele moço. Fez várias pesquisas, mas tudo em vão. Um dia, contou o fato ao Papa Clemente VIII. O Santo Padre lhe disse: Meu filho, é preciso publicar muito este fato para mostrar como Deus recompensa os que dão esmolas em nome das almas do purgatório e sufraga os mortos com atos de caridade.
Uma mulher em Nápoles, conta Rossingnoli (91.ª Maravilha), chegou a uma extrema miséria, porque o marido fora preso por muitas dívidas. Os filhos passavam fome. Recorreu a um grande rico da cidade e pediu-lhe uma esmola. Recebeu uma moeda de prata. Entrou numa igreja e pôs-se a considerar a triste situação em que se encontrava. Recorreu às almas do purgatório, procurando sufragá-las com fervorosas preces. Depois, tomou a moeda de prata, importância exata de uma espórtula de Missa, e mandou celebrar uma santa Missa pelas almas. Sai da igreja muito consolada e cheia de confiança. Encontra na rua logo um velho muito pálido que lhe quer falar.
— Coragem, minha senhora, diz-lhe o desconhecido, peço o favor de me levar esta carta a Fulano, tal rua, número tal. É um dos homens mais conhecidos e ricos do lugar.
A senhora executou logo o pedido. O jovem destinatário tomou a carta, abriu-a e empalideceu:
— A letra de meu pai... E meu pai já morto!
Indagou muito e veio a concluir que aquela pobre viúva havia salvo do purgatório a alma do seu pai querido. A carta dizia assim: “Meu filho, teu pai acaba de ser libertado do purgatório graças a uma santa Missa mandada celebrar por esta senhora, portadora desta. Está ela numa extrema miséria e eu a recomendo à tua gratidão”.
Grande foi a comoção do jovem. Após acalmar-se disse à pobre: “Minha senhora, acaba de fazer uma grande obra de caridade e lhe devo uma eterna gratidão: libertou meu pai do purgatório com uma Missa, esta manhã... Doravante eu me encarrego de protegê-la”. E assim o fez. — (Carfora — Fortuna hominis. Lib. I — Rossignoli, 91.ª Maravilha).
[1] Tob. XVV, 9.
[2] Eccl. II, 33.
[3] S. —. Cripost. Hom. XXXII — Epist. ad Hebreus
[4] Tobias — IV, 8, 12.
[5] Rousic — Le Purgatoire — C. XXIV
[6] Bremond — Le Correspondent — 11, 916 — Priere pour les morts.
[7] S. Petr. Dami. Opus. 34 c. 4.
[8] Crepost — Sermo de fide ressuctionis.
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