Uma alma que Deus, por uma providência particular, conduziu durante algum tempo pela trilha de uma devoção sensível, acha uma razão de desânimo, que ela acredita muito bem fundada, se Deus vem a mudar de conduta a seu respeito, e já não a toca mais sensivelmente.
É por falta de reflexão que ela cai nessa armadilha.
Acaso pensa uma alma cristãmente quando se entrega então ao abatimento, ao desânimo? Será por essas doçuras, por essas consolações sensíveis, que ela serve a Deus? Em si mesmo e por si mesmo, Deus não merece nada? A posse de Deus e as recompensas eternas, que são prometidas à fidelidade, não fazem nenhuma impressão sobre ela para sustentá-la? Se assim fora, e se ela O reconhecesse, deveria bendizer a Deus por haver retirado essas graças sensíveis: pois seria muito de recear que só a si mesma ela houvesse procurado no serviço de Deus, e houvesse inteiramente esquecido a glória que Deus queria haurir dela.
Portanto, se então ela carece de firmeza nas suas resoluções, é que, perdendo de vista a Deus, e não sendo mais atraída por essa doce sensibilidade, o seu coração não está num exercício frequente de Fé, de Esperança, de Amor, de gratidão, de desejo de ser todo de Deus. Ora, se o seu coração permanecer na inação em relação a Deus, ou se dissipará procurando satisfações naturais, ou incidirá na pusilanimidade e perderá todo ânimo.
Para vos sustentardes em qualquer estado em que vos acheis, deve ser a Fé o vosso recurso: ela será a vossa força e o vosso consolo. Se a sua luz vos alumiar e vos conduzir, far-vos-á enxergar as ciladas, e dar-vos-á os meios de evitá-las. A conduta de uma alma fundada na Fé, é bem mais segura do que a conduta de uma alma fundada nas consolações. Na primeira, os princípios aparecem sob o mesmo aspecto, sempre seguros e inabaláveis; fundam-se na verdade e na revelação; facilmente se tiram deles as consequências que se devem pôr em prática, e os meios que se devem empregar para ser bem sucedido. Destas verdades: que Deus, Criador do universo, é o soberano Senhor, o fim último das criaturas; que só as pode ter criado para a Sua glória; que morreu para lhes proporcionar uma vida eternamente feliz; de tudo isto claramente se conclui que é preciso obedecer-Lhe, referir-Lhe tudo o que depende de nós, amá-lO acima de todas as coisas, seja lá como for que Ele nos trate. Estas verdades, achamo-las sempre na Religião, desde que o queiramos; ela nos fala sempre a mesma linguagem: aqui nada está sujeito à ilusão. Os princípios são claros, são certos: não se fazem mister longos raciocínios para ver as consequências práticas que deles se devem tirar.
Pelo contrário, a devoção sensível está sujeita à ilusão. Pode-se tomar uma naturalíssima ternura de coração por uma consolação do Céu. Então, depois de experimentar os mais ternos sentimentos na oração, fica-se sem vigilância, sem força, sem vontade para levar uma vida mais recolhida, mais mortificada, mais regular. Esses exemplos não são raros.
Quanto às consolações e à sensibilidade que vêm realmente de Deus, e que produzem numa alma frutos preciosos de virtude e de mérito, Deus pode retirá-las. Semelhantes graças não são necessárias à salvação, e o Senhor às vezes as cerceia, para nos ensinar que, se devemos recebê-las com tanta humildade quanta gratidão, não nos devemos apegar a elas de maneira que a nossa fidelidade esmoreça e concebamos inquietação quando elas vêm a nos faltar. Privando-nos delas, Deus não se afasta de nós; tem outros desígnios: quer experimentar e depurar o nosso amor a Ele.
Entretanto, que sucede então com uma alma acostumada a se deixar guiar por essa sensibilidade de devoção, quando não a acha mais no seu coração? Então ela se sente sem apoio: não sabe mais a que recorrer para se animar e se sustentar. Pouco afeita a se guiar por esse amor que vem da Fé, nem sequer pensa em enveredar por essa trilha, a única que lhe reste, e cujas vantagens ela não conhece. Desconcertada por essa privação, afasta-se de Deus por infidelidades multiplicadas, por imaginar falsamente que Deus se afasta dela, quando não faz senão experimentá-la. A tentação avoluma-lhe os objetos, e põe-na em perigo de abandonar a Deus inteiramente.
Se a sensibilidade da devoção é mais doce e mais satisfatória, a conduta da Fé é bem mais segura e mais meritória. A esta devemo-nos, pois, apegar em todo tempo e em qualquer estado em que nos achemos. Saboreai as consolações que Deus vos der; mas, agindo, apegai-vos aos princípios da Fé; então não tereis nada a mudar aos motivos da vossa conduta, quando as consolações vierem a cessar.
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