Ainda que é bom
pensarmos que este trabalho das desconsolações na oração nos vem por
nossas culpas, para que assim andemos sempre humildes e confundidos;
contudo também é necessário que entendamos que nem sempre é castigo de
nossos pecados ou defeitos, mas sim disposição e altíssima providência
de Deus que reparte Seus dons como é servido; pois não convém que todo o
corpo sejam olhos, cabeça, pés ou mãos, senão que haja membros
diferentes na Sua Igreja. E assim não convém que se dê a todos aquela
oração especialíssima e avantajada de que falamos quando tratamos da
oração. E isto não é preciso que seja porque o não mereçam todos, pois,
ainda que o mereçam, contudo poderão merecer mais, e lhes fará o Senhor
maior mercê em lhes dar outra coisa, que não em lhes conceder esse dom
de oração. Houve muito grandes Santos dos quais não sabemos que tivessem
estas coisas; e se as tiveram, disseram com S. Paulo que não se
prezavam delas, nem se gloriavam senão em levar a cruz de Cristo: Longe de mim gloriar-me em outra coisa que não seja a cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo (1).
Sobre isto diz
o P. Mestre Ávila uma coisa de muita consolação: “Deixa Deus a alguns
desconsolados por muitos anos, e algumas vezes por toda a vida; e a
parte ou a sorte destes creio que é a melhor, se há fé para não julgar
mal, e paciência e esforço para sofrer tão grande desterro”.
Se cada um se acabasse de persuadir que essa é para ele a melhor parte, facilmente se conformaria com a vontade de Deus. Muitas razões dão os Santos e os mestres da vida espiritual para mostrar que aos tais lhes está melhor esta sorte, ou esta sua tribulação e secura; agora porém diremos somente uma das razões principais, que apontam S. Agostinho, S. Jerônimo, S. Gregório, e comumente todos os que tratam desta matéria, e é que nem todos são capazes de conservar a humildade na altura e sublimidade da contemplação, porque apenas derramamos uma lágrima, e já nos parece que somos espirituais e homens de oração, e talvez nos comparamos e ainda preferimos aos demais.
Até o apóstolo
S. Paulo parece que houve mister algum contrapeso, para que estas
coisas o não levantassem e ensoberbecessem. Para que o ter sido
arrebatado ao terceiro céu, e o ter tido tão grandes revelações não
fosse causa de perder a sua humildade, permite Deus que o acometa uma
tentação que o humilhe, e lhe faça conhecer a sua fraqueza. Pois por
esta mesma causa, ainda que aquele caminho da contemplação pareça mais
alto, contudo este da secura e desconsolação é mais seguro; e assim Deus
Nosso Senhor que é infinitamente sábio, e nos guia a todos para um
mesmo fim, que é Ele mesmo, leva a cada um pelo caminho que Ele sabe é
mais conveniente. Pode muito bem ser que, se tu tivesses grande entrada
na oração, em vez de saíres humilde e aproveitado, saísses soberbo e
desvanecido; e pelo outro caminho da desolação andas sempre humilde e
confuso, tendo-te por inferior a todos; e assim melhor caminho é este e
mais seguro para ti, ainda que tu o não entendas.
A este propósito ensina S. Gregório uma doutrina muito boa sobre aquelas palavras de Job: Se o Senhor vier a mim, não O verei; e se Ele se for e apartar de mim, não O entenderei (2).
Ficou o homem, diz, tão cego pelo pecado, que não conhece quando se vai
aproximando de Deus, nem quando se vai afastando dEle; antes muitas
vezes aquilo que imagina é graça de Deus, e que o há de unir mais com
Deus, se lhe converte em objetos de ira, e lhe serve de ocasião de se
apartar mais de Deus. E pelo contrário outras vezes o que ele pensa que é
ira de Deus ou motivo para que Deus se aparte ou esqueça dele, isso
mesmo é graça divina, concedida precisamente para que o homem se não
aparte de Deus.
Quem é que
vendo-se em uma oração muito alta e muito elevada, e muito regalado e
favorecido de Deus, não pensará que se vai chegando mais ao mesmo Deus?
Ora muitas vezes com estes favores chegam alguns a ensoberbecer-se e a
fiar-se de si, e pelo mesmo caminho por onde pensavam subir e
aproximar-se mais de Deus, por ali os faz cair o demônio. E ao revés
muitas vezes vendo-se um muito triste e aflito, cercado de graves e
fortes tentações, muito combatido de pensamentos desonestos, de
blasfêmias e tentações contra a fé imagina que Deus está irado contra
ele, e que o vai abandonando e apartando de si, e então precisamente é
quando está mais perto dEle; porque com isto mais se humilha, conhece a
sua fraqueza, desconfia de si, acode e recorre a Deus com maior ânsia e
fortaleza, e pondo nEle toda a sua confiança, procura e forceja por
nunca se apartar dEle de maneira que o melhor caminho não é aquele que
vós julgais por melhor, senão aquele por onde o Senhor vos levar, e esse
haveis de entender que é o mais seguro e o que mais vos convém.
Mais. Essa
mesma amargura, essa pena e dor que vós sentis, por vos parece que não
tendes oração com aquela perfeição e recolhimento que deveis, pode ser
outra razão de consolação, porque é particular graça e especial mercê do
Senhor, e sinal de que o amais, pois não há dor onde falta o amor, não
há pesar e pena de servir mal, sem o propósito e vontade de servir bem. E
assim esta pena e esta dor não há dúvida que nasce do amor de Deus e do
desejo de O servir melhor. Se não fizésseis caso de O servirdes mal,
nem de terdes oração mal feita, nem de fazer as coisas imperfeitamente,
isto seria mau sinal; porém sentirdes pena e terdes dor por vos parecer
que fazeis as vossas obras mal feitas, isto é bom sinal. Contudo esta
dor e este sentimento pode-se aplacar e moderar, se entenderdes que,
enquanto isso é pena e castigo, é da vontade de Deus, e, portanto
conformai-vos com ela e dai muitas graças ao Senhor, pois vos deixa
andar desejoso de Lhe agradar, ainda que as obras vos pareçam pobres e
imperfeitas.
Mas há mais.
Ainda que na oração não façais outra coisa senão assistir ali é fazer
ato de presença diante da Majestade Divina, nisto mesmo servis e
agradais muito a Deus, como vemos cá no mundo que é grande majestade dos
reis e príncipes, que os grandes de sua corte vão todos os dias ao
palácio e assistam em sua presença. À glória da Majestade de Deus, à
importância do negócio que tratamos e à baixeza da nossa condição
pertence que estejamos muitas vezes esperando longamente às portas do
palácio celestial; e quando o Senhor vos abrir as portas, dai-Lhe graças
por esta mercê; e se as não abrir, humilhai-vos, reconhecendo que o não
mereceis: e desta sorte sempre será muito boa e proveitosa a vossa
oração.
De todas estas
considerações e de outras semelhantes nos havermos de ajudar para nos
conformarmos com a vontade de Deus nesta desolação e desamparo
espiritual, aceitando tudo com boa vontade e dando ao Senhor muitas
graças, dizendo com o santo arcebispo de Braga, D. Frei Bartolomeu dos
Mártires: Bendita seja esta amargura, amarga e amarguíssima, mas cheia de graças e bens singulares. (3)
Notas:
(1) Mihi autem absit gloriari nisi in cruce Domini nostri Jesu Christi. Ad. Gal. VI, 14.
(2) Si venerit ad me, non videbo eum; si abierit, non intelligam. Job IX, 11.
(3) Salve, amaritudo, amarissima, omnia gratia plena! Compend., cap. 26.
(Exercícios de Perfeição e Virtudes Cristãs
pelo V. Padre Afonso Rodrigues da Companhia de Jesus, versão do
Castelhano por Fr. Pedro de Santa Clara, 4.ª Edição, primeira Parte,
Tomo II.)
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