vontade já de si enferma, sendo agitada por contínuos assaltos que a concupiscência lhe dá, não pode fazer tamanho progresso no amor divino, como a razão e a inclinação natural lhe sugerem que deveria fazer.
Ah! Teotimo, que belos testemunhos não só de um grande conhecimento de Deus, mas também de urna forte inclinação para ele, foram deixados pelos grandes filósofos, Sócrates, Platão, Trismegisto, Aristóteles, Hipócrates, Séneca, Epíteto! Sócrates, o mais louvado deles, conhecia claramente a unidade de Deus e tinha tanta inclinação em amá-lo, que segundo afirma Santo Agostinho, muitos julgaram que nunca ensinou a filosofia moral por outro motivo, senão o de aperfeiçoar os espíritos para que estes pudessem melhor contemplar o soberano bem, que é Deus único, E Platão diz que filosofar não é outra coisa senão amar a Deus, e que filósofo não era senão o que ama a Deus. Que direi do grande Aristóteles, que com tanta eficácia louva a unidade de Deus , e dela falou tão magnificamente em tantos lugares? Mas, ó meu Deus! tendo estes grandes espíritos tanto conhecimento da Divindade, e tanta propensão para a amar, a todos faltou a força e coragem para bem a amar. Pelas criaturas visíveis, reconheceram as coisas invisíveis de Deus, até mesmo a sua eterna virtude e divindade, diz o grande Apóstolo , de forma que não são excurveis, por quanto, depois de terem reconhecido a Deus, não o glorificaram como a Deus.
Não o glorificaram como deviam, isto é, sobre todas as coisas, porque não tiveram a coragem de destruir a idolatria, mas comunicaram com os idólatras, retendo a verdade, que conheciam injustamente prisioneira nós seus corações, preferiram a honra e o vão repouso de suas vidas, à honra que deviam a Deus; e assim se desvaneceram nos seus pensamentos. Não causa dó, Teotimo, ver Sócrates moribundo, segundo refere Platão, falar dos deuses como se houvesse muitos, ele, que tão bem sabia não haver mais que um só? Não é deplorável que Platão tivesse ordenado que
sacrificassem a muitos deuses , ele, que tão bem sabia a verdade da unidade divina? E .Mercúrio Trismegisto, não é lamentável vê-lo lastimar e prantear tão vergonhosamente a abolição da idolatria , ele que em tantos lugares falara tão dignamente da Divindade? Mas o que mormente admiro é o pobre e ingênuo Epiteco, Pois não faz compaixão ver este distinto filósofo falar,por vezes, de Deus com tanto critério, sentimento e zelo, que o tomariam por um cristão saindo de alguma santa e profunda meditação, e contudo, por outro lado, de vez em quando, fazer menção dos deuses à maneira pagã? Porque é que esse pobre homem, que conhecia tão profundamente a unidade divina, e apreciava a sua bondade, não teve o santo zelo da honra divina para não tergiversar nem dissimular num assunto de tão grande importância?
Em suma, Teotimo, a nossa mesquinha natureza dilacerada pelo pecado, faz como as palmeiras que temos na Europa, que produzem frutos imperfeitos como se fossem amostras dos verdadeiros, mas quanto a dar tâmaras maduras e sazonadas isso é só reservado às regiões mais quentes. Assim também, o nosso coração humano produz muito naturalmente certos princípios de amor para com Deus, mas daí a amá-lo sobre todas as coisas, que é a verdadeira maturidade do amor, devido a esta suprema Bondade, isso só pertence aos corações animosos, favorecidos da graça celeste, e revestidos da santa caridade. Este fraco e perfeito amor de que a natureza sente os estímulos, não é senão um certo querer sem querer, um querer que queria, mas não quer, um querer estéril, que não produz verdadeiros efeitos, um querer paralítico, que vê a piscina salutar do santo amor, mas não tem força para se lançar nela ; enfim, este querer é um aborto da boa vontade, que não tem a vida e o vigor necessário para eficazmente preferir Deus a todas as coisas, pelo que exclama o Apóstolo, falando em nome do pecador: Sinto que quero o bem, mas não acho meio de o fazer perfeitamente.
(CAPÍTULO XVII, do Livro Tratado do Amor de Deus, São Francisco de Sales)
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