Nós podemos justa ou injustamente, mas sem malicia, desprezar, num homem, a inteligência, por mais brilhante que seja. Podemos, justa ou injustamente, mas sem culpa grave, desprezar, num homem, as conquistas ou façanhas com que ele tenha feito jus à gratidão de sua pátria ou à admiração da humanidade.
O que, porém, nenhum de nós, sem grande perversidade, pode fazer, é desprezar, em outro homem, o amor que ele nos consagre.
Nenhum de nós o pode porque isso importa, uma exceção monstruosa da nossa natureza que o amor atrai, que o amor fascina, que o amor impele à única reciprocidade digna do amor: amar; não amar a quem nos ama, anomalia é tão repulsiva, violenta e monstruosa, que só o Dante, na Divina Comédia, a pôde definir, dando ao inferno, por origem, o amor desprezado.
Dir-se-ia que, nisto, Deus é igual ao homem, porque o desprezo que o homem não pode sofrer sem a vindita do ódio, Deus não o pode tolerar sem a desafronta das chamas eternas.
E se o amor desprezado é esse amor infinito que, em Jesus Cristo, veio solicitar os homens, mostrando preferências, se as teve, juntamente pelos pequenos, pelos pobres, pelos infelizes; de todo não o podemos compreender, esse desprezo que eu só poderia profligar devidamente se tivesse o cinzel do artista incomparável que gravou no mármore da Divina Comédia a represália do amor desprezado.
Pois bem: esta enormidade nós a vemos hoje; no Brasil, neste traço bem saliente da sua intelectualidade social e dirigente -- o desprezo de Jesus Cristo. E se bem quiserdes verificar desprezo tão monstruoso, contemplai-o neste fenômeno: falsa noção do Cristo.
Examinai a atualidade brasileira e encontrá-la-eis, a essa falsa noção nas cadeiras do professorado, no Parlamento, nos artigos dos jornais, na ópera, na comédia, no romance, no livro de versos, tanto como no ensino dos colégios e academias. Por toda parte vereis um Cristo falso e imaginário, substituindo ao Cristo verdadeiro, isto é, ao Cristo da História, do Evangelho e da Igreja.
O Cristo da História, vós o sabeis, enche toda a História que, sem Ele, é incompreensível. Não obstante, substitui-se a Sua biografia histórica por uma falsa biografia, negando-se facilmente ao primeiro os personagens da História, isto é, a Jesus Cristo, o que não se nega a César, Pompeu ou Napoleão, isto é, aos personagens secundários da mesma História.
O Cristo do Evangelho, também vós sabeis, não pode ser esse que o pedantismo literário descreve, com pieguices de estilo, indignas do Mestre incomparável que evangelizou a verdade, elegeu os apóstolos e promulgou a lei moral.
Não, não pode ser esse, porque esse é um Cristo fútil, ridículo, um moço e louro nazareno, produto da imbecilidade literária,
Também o Cristo da Igreja não pode ser esse que, no Brasil, imaginam os intelectuais sem fé e que querem uma religião sem Cristianismo, um Cristianismo sem Igreja.
O Cristo da Igreja não pode ser o dispensador de preceitos e ensino de que Ele próprio encarregou a Igreja, por Ele constituída órgão e interprete da verdade...
Sim, se o Cristo que prepondera no espírito das classes encarregadas de darem ao povo o modelo das crenças e a regra dos costumes, é um Cristo falsificado, mister é mostrar aos pequenos, aos pobres, aos operários, às vitimas de tal falsificação, de onde esta procede.
Ela procede da mais lamentável ignorância da parte dos incrédulos, os quais não têm, da divindade do Cristo, a idéia que a própria razão, independente da fé, pode ter.
Passarei a demonstrar esta afirmativa de que a divindade de Jesus Cristo é uma verdade que pode ser afirmada, não só pela fé, como também pela razão.
Para isso, servir-me-ei de três argumentos que exporei e desenvolverei com longas e variadas considerações: o argumento histórico, o argumento experimental e o argumento psicológico.
Quanto ao argumento histórico - Jesus Cristo preexistiu na História como Deus; existiu na História como Deus; sobrevive na História como Deus.
Preexistiu como Deus, porque, ou havemos de recusar 40 séculos da História, ou havemos de afirmar que esses 40 séculos não fizeram senão desejar e esperar o Messias, e o Messias, tal como o descreviam a salmodia de David, os discursos dos Profetas e os próprios livros dos filósofos pagãos.
O messianismo, isto é, a expectativa de um libertador divino que viesse resgatar a Humanidade, é um fato histórico, afirmado por todos os historiadores, inclusive Volnei e Voltaire.
Jesus Cristo existiu como Deus, porque, sirvo-me agora de uma bela síntese de Frepel - nasceu; como Deus, viveu como Deus, falou como Deus, operou como Deus, na ordem física pelo milagre, na ordem intelectual pela visão dos tempos, na ordem moral pela santidade absoluta. Ainda mais: Ele exigiu como Deus, ameaçou como Deus, prometeu como Deus, perdoou como Deus, exaltou soberanamente todos os direitos de Deus e, se é certo sofreu e morreu, ninguém pode negar que a Sua paixão e a Sua morte foram a paixão e a morte de um Deus! como de Deus foi a Sua ressurreição.
Jesus Cristo sobrevive como Deus, porque, há vinte séculos já, é crido como Deus, é obedecido como Deus, é adorado como Deus. Preexistir como Deus, na História, ter existido como Deus na História sobreviver como Deus na História, é ser Deus; porque, ou não há conexação na História; ou a divindade de Jesus Cristo é uma certeza histórica.
Quanto ao argumento experimental, ele é mais convincente ainda. Jesus Cristo tem uma doutrina cujos efeitos são atestados pela História. Esta doutrina foi um reviramento completo de todas as idéias e sentimentos do universo. Foi uma contradição absoluta aos instintos de todos os povos; foi uma transformação completa, radical, absoluta, do direito, da legislação, da política, da ciência, que governam o mundo. Para que Sua doutrina vencesse, foi-Lhe mister vencer todas as forças do mundo, isto é, o paganismo, a política romana, a filosofia da Grécia e o judaísmo.
Como e com que armas a doutrina venceu estas forças? Venceu-as sem meios nem recursos humanos, opondo a todas as potências do mundo doze homens inermes e que proclamavam ao mundo a maior e mais estupenda de todas as notícias que o mundo já tinha ouvido, isto é: que Deus se tinha feito homem, e que este homem nascera de uma virgem, depois de ensinar a verdade que tinha morrido crucificado, mas, conforme o que Ele mesmo havia anunciado, resuscitado três dias depois de Sua morte. Pois bem; não obstante tão grande escândalo para o mundo, o mundo foi vencido e reformado radicalmente pela doutrina. Ora, a ciência experimental afirma que todo efeito é proporcional a uma causa. O Cristianismo é evidentemente um fenômeno divino que exige uma causa divina para ser explicado, sob pena de ficar sendo o maior e o mais monstruoso dos absurdos da História.
O argumento experimental, portanto afirma a divindade de Jesus Cristo.
Não o afirma menos o argumento psicológico. Jesus Cristo, perante Seus juízes, perante a multidão, Se afirmou como Deus; portanto, Jesus Cristo é Deus. Por que Se afirmou? Sim, por que Se afirmou: que homem é esse que Se afirmou como Deus? É o mesmo homem que preexistiu na História como Deus, existiu na História como Deus, e sobrevive, na História como Deus, que homem é esse - que Se afirmou como Deus? E o mesmo homem que Seus próprios adversários, como Renau, Strauss e tantos outros, descrevem como um homem perfeito, perfeito na inteligência, perfeito no coração, perfeito no caráter. É o mesmo homem de quem Renan diz que, quaisquer que sejam os fenômenos inesperados do futuro, por nenhum outro será igualado; e de cuja religião diz textualmente: "Jesus promulgou a religião pura, última, definitiva. E se outros planetas têm habitantes, dotados de razão e liberdade, a religião destes não pode ser diferente".
Se não é verdadeiro o testemunho de Jesus Cristo, deixa Ele de ser o homem perfeito e passa a ser um impostor ou um alucinado. Se Ele é um impostor, como pode a Sua importância resistir vinte séculos? Se Ele é um alucinado, alucinada é a humanidade cristã inteira, que há vinte séculos O adora como Deus. Eu avanço mais - que, se Jesus Cristo mentiu e não é Deus, o maior mentiroso é o próprio Deus, que há vinte séculos deixa a humanidade acreditar que a mentira é a verdade; que há séculos deixa um alucinado exercitar todos os direitos de Deus.
O verdadeiro Cristo, o Cristo que deveis seguir é o que vos mostra a Igreja. Esse é o Cristo verdadeiro, que se destaca na História, que refulge na ciência e que Se afirma na palavra divina que Ele próprio fez ouvir ao mundo. Vos principalmente, operários, não deveis esquecer a dignidade, a nobreza e suprema distinção que Ele vos concedeu. Parece que Deus, fazendo-Se homem, e para salvar o homem vindo a este mundo, devera sentar-Se num trono ou assumir a autoridade de um estadista, ou empunhar a espada de um general. Ele, porém, desconcertou todos os juízos humanos, preferindo a todas as grandezas do mundo, fazer, como se fez, operário; manejar, como manejou, durante dezoito anos, na oficina de José, os utensílios de um carpinteiro.
Este é um grande episódio um fato singular, um exemplo magnífico, uma lição sublime, nunca bastantemente meditada no plano divino da nossa redenção.
Jesus, na oficina, é a dignificação do operário e a divinização do trabalho. A dignificação do operário porque antes de Jesus Cristo, o operário era desprezado e o trabalho manual era considerado, em Roma e na Grécia, como uma coisa ignóbil. Jesus Cristo, porém, fazendo-Se operário, deu ao trabalhador títulos de nobreza, cobiçados depois d’Ele, pelas pessoas mais ilustres e nobres, por associações e institutos religiosos. Jesus, na oficina, é também a divinização do trabalho, porque é o trabalho como quer a Providência, na ordem e com os desígnios que ela lhe dá; é o trabalho, não como um meio de, enriquecer e gozar, mas como fadiga salutar e expiatória imposta ao homem.
Compreendem agora os operários a necessidade que eles têm da verdadeira noção de Cristo, que é outra e bem diferente da noção que lhes dão, na sociedade brasileira, com grande e descomunal ignorância, os intelectuais sem fé.
Fé - eis a virtude que eu aconselho hoje, aos operários e sem a qual eles não poderão ter, no Cristo, a devida confiança.
Devo observar - que, aconselhando uma virtude a cada uma das classes sociais a que me dirijo, faço-o, apenas, sob o ponto de vista restrito e especial a conferência. Da mesma sorte que o homem de ciência, o homem de letras, o homem de Estado e o sectário, a cada um dos quais foi dado uma virtude cardeal, se não podem julgar, porém, dispensados das outras virtudes; também o operário, o industrial e o capitalista, a cada um dos quais vou aconselhar uma virtude teologal, não podem julgar-se dispensados das outras virtudes.
Afirmo que ao operário, como operário, a virtude de que mais necessita presentemente é a fé.
Da Fé, definindo-a com o apóstolo S. Pedro, que ela é a substância das coisas que devemos crer e a expectativa das coisas que devemos esperar.
A teoria da Fé é análoga à teoria da ciência. O objeto desta é, ao mesmo tempo visível e invisível nos seus fenômenos. Os mistérios da religião não são menos compreensíveis do que os mistérios da ciência. Se esta tem verdades claras, também a Fé as possui.
A Fé tem princípios, objeto, motivo, garantia; mas tem também condições de credibilidade. O principio é a graça, dom gratuito de Deus. Objeto é a verdade revelada por Deus, a qual, às vezes, se compreende, às vezes não. O motivo é a autoridade de Deus. A garantia é a Igreja. Em todas essas coisas a razão do homem não é livre, certamente. Quanto, porém, aos motivos de credibilidade, a razão do homem opera livremente, porque pode, quando lhe apraz analisar e verificar os fatos comprobatórios de que a verdade foi revelada.
A Fé não é, pois, como muitos supõem, uma adesão inconsciente; é um ato voluntário e mais belo que o homem possa praticar, porque é, ao mesmo tempo, um holocausto do homem, glória de Deus e uma reparação do pecado.
Não se compreende que a tantos repugna a fé religiosa, quando é certo que o homem em qualquer das relações de sua vida, não vive senão de fé; quando é certo que a necessidade da Fé é absoluta.
A Apologética o demonstra com muitos e variados argumentos: mas eu quero neste momento utilizar-me só mente das analogias de Bougaud.
A criação se compõe de três reinos superpostos: o mundo da natureza, o mundo das leis da natureza no mundo sobrenatural. Para, no primeiro, o homem contemplar as belezas da criação, que tanto fazem o encanto do poeta e do artista, Deus deu-lhe os olhos. Para, no segundo, apreender as leis da natureza, que tanto fazem o encanto do geômetra, do físico, do sábio, Deus deu-lhe a razão. Para, no terceiro, elevar-se até à contemplação das maravilhas sobrenaturais, Deus deu-lhe a Fé. Os olhos, a razão a fé -eis os três órgãos que se devem harmonizar no homem que deseje verdadeiramente glorificar a Deus.
Por que acreditar que a contemplação dos olhos é bela, que é bela a contemplação da razão, e não acreditar o mesmo das contemplações da Fé?
É á Fé, entretanto, que S. Paulo entoa um hino triunfal... Em Abel, em Hennoch, em Abrahão, em Sara, em Jacob, em José, em Moisés, em Gedeão, em Sansão, em David, em Samuel e nos Profetas. Hino triunfal, cujas estrofes são reinos vencidos, feras subjugadas, batalhas ganhas, doenças e torturas, cadeias e calabouços, a fome, a angústia, a dor e a morte - tudo isto impotente para arrancá-la de um coração onde, como diamante divino, ela está engastada.
Guardem todos os operários a Fé - este é o conselho que lhes dou, não podendo, porém, concluir sem me lembrar de que hoje é o dia da Ressurreição.
Por mais que, neste momento, eu o tente, não posso reprimir a minha imaginação. Ao lado do sepulcro de onde Jesus Cristo saiu glorioso, e que a Igreja nos apresenta na festividade de hoje, como que eu vejo um outro sepulcro. Sim, eu vejo uma cova... uma cova que mais e mais se alarga e que se o coveiro não for detido, de tão grande se tornará capaz de absorver um povo inteiro. Eu vejo a cova onde se lançam continuamente crenças e tradições religiosas... Eu vejo o coveiro, um vulto sinistro, como que fascinado, contempla-la, parecendo que o seu maior desejo é que a cova absorva os símbolos que restam ainda de uma grande fé nacional.
Mas que cova é essa? Que coveiro é esse?
É a cova que desejam à pátria os inimigos de Jesus Cristo e o coveiro a incredulidade, que, para consumar a sua obra, já tenta aliciar os operários.
Não, operários! Não coopereis com eles, os incrédulos! Cooperai, antes, com os que trabalham pela salvação da pátria, que devemos todos desejar esperar.
Por que não esperá-la?
Vendo o Cristo ressuscitar, por que não esperar que ressuscitem ainda o sentimento, o entusiasmo religioso, a piedade católica dos nossos antepassados?
A cova está aberta e nela já estão apodrecendo crenças e tradições. Mas que importa? Na natureza a semente primeiro apodrece para depois se transformar no arbusto. Também as crenças que já apodrecem se transformarão, talvez, em germens benéficos de onde brotará uma nova e bela árvore: o Brasil regenerado, forte, cristão.
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