sábado, 18 de fevereiro de 2017

Das vantagens da luta

Das vantagens da luta

Non coronatur nisi qui legitime certaverit.
Ninguém é coroado, sem que tenha combatido legitimamente.
(II. Tm 2, 5)

Enumeramos as diversas qualidades que deve ter o verdadeiro soldado de Deus. Dispondo desses meios, pode entrar em guerra, certo de que a luta durará enquanto lhe durar a vida. 

Terá, com efeito, toda a vida uma natureza rebelde, tendências más, que deverá sempre reprimir, sem nunca poder diminuí-las. A concupiscência resulta do pecado original. Como os outros males que provêm de igual origem, a ignorância, a sujeição às enfermidades e à morte, essa concupiscência se fará sentir toda a vida para nos fazer compreender o mal que é o pecado, e levar-nos a expiar nossas faltas individuais.
Mas essa luta não é somente um castigo e um meio de expiação. Deus pune como Pai, e as penas que impõe são também benefícios, pois impedem males mais funestos e produzem vantagens inestimáveis. A luta nos acautela contra a indolência, contra o entorpecimento espiritual, apto a degenerar em um sono mortal, enquanto é uma ocasião de merecer, um meio de aumentar a felicidade eterna.

Ai, por conseguinte, das almas covardes que recusam o combate! Relembramos há pouco os hebreus querendo entrar na terra de Canaã, que o Senhor lhes prometera, e para onde enviaram exploradores que se certificassem de sua fertilidade. De lá trouxeram frutos magníficos. Foi com razão, disseram, que a denominaram uma terra em que corre leite e mel. Mas essa terra era habitada por povos valorosos, defendida por cidades fortes. A conquista desse país, tão belo e tão rico, exigiria uma longa e terrível guerra. Já dissemos que, cedendo ao medo, a maior parte dos exploradores exageraram as dificuldades e quiseram afastar o povo de Israel da dita empresa.

O povo, infelizmente, os atendeu; murmurando contra Deus, quis fugir da luta e voltar para o Egito. O Senhor irritou-Se; prometera a vitória, e duvidavam agora da Sua promessa; desejava que a obtivessem pela luta, e recuavam covardemente diante da necessidade de combater. Era tornar-se indigno da felicidade prometida. 

O castigo infligido pelo Senhor foi exemplar, pois devia servir de lição a todas as gerações vindouras.

Escutemos essa linguagem severa: "Vossos cadáveres ficarão estendidos neste deserto. Vós todos que fostes recenseados de vinte e mais anos, e que murmurastes contra Mim não entrareis na terra em que eu havia jurado introduzir-vos exceto Caleb, filho de Jefné, e Josué, filho de Nun. Vossos filhos viverão errantes na solidão durante quarenta anos; carregarão a pena de vossa apostasia até que os corpos de seus pais sejam consumidos no deserto. Explorastes a terra durante quarenta dias: um ano pagará por um dia, e durante quarenta anos carregareis o castigo de vossas iniqüidades e conhecereis Minha vingança" (Nm. 14, 29-34). 

Desagradam, portanto, ao Senhor os homens pusilânimes. As almas fortes e ardentes na luta, ao contrário, agradam-Lhe e encantam-nO. Foi por isso que o Senhor, mesmo depois da conquista da terra prometida, deixou subsistir entre os israelitas alguns vestígios da raça de Canaã; quis que os filhos dos conquistadores aprendessem a guerrear o inimigo como seus pais e que seu povo não perdesse o hábito do combate, pois, é tão temível uma vida indolente e mole quanto é vantajoso à alma ter inimigos a repelir e a vencer. 

São principalmente as almas que o Senhor chamou a uma virtude mais alta, às quais concedeu graças mais numerosas, que devem travar combates mais rudes. Iludem-se, pois, completamente, esses piedosos fiéis que não compreendem que a vida de uma alma toda dedicada ao serviço de Deus seja cheia de lutas.

Desejariam, por certo, servir fielmente a Deus, amá-lO de todo o coração, mas sem que isso lhes custasse muito à indolente natureza. "Serei religioso, piedoso, fiel ao meu dever, sustentarei alguns combates, mas terei, espero, muitos intervalos de repouso; em minhas lutas serei auxiliado, animado e, em caso de necessidade, carregado. Os impulsos de meu coração, afetivo por natureza, me tornarão generoso; as doçuras da oração, as alegrias da comunhão, os conselhos paternais de meu guia me consolarão dos sofrimentos, e atravessarei a vida protegido, apoiado, até o dia do triunfo final." 

Ilusão! Às almas a quem Deus reserva uma magna recompensa, não é tão fácil o triunfo final. A felicidade eterna será um bem laboriosamente conquistado; e isto constitui a glória dos eleitos e lhes aumenta a alegria.

É evidente que os trabalhos serão mais penosos na terra, para aqueles a quem está reservada uma eternidade mais feliz; terão períodos consecutivos, por vezes muito longos, de lutas contínuas, de tentações horríveis, de aridez, de incapacidade; faltar-lhes-á então todo apoio exterior, e só Deus permanecerá oculto no fundo da alma, sem deixar sentir Sua presença. É preciso contar com essa luta terrível, perceber-lhe de antemão os horrores, e aceitá-los corajosamente. Depois, chegada a provação, quando as consolações cessarem e os sentimentos parecerem sufocados, será preciso apoiar-se unicamente na fé, na esperança e na caridade; na fé - acreditando, apesar de tudo, no poder, na sabedoria, no amor de Deus; na esperança abandonando-se-lhe entre as mãos com plena confiança em Sua bondade infinita; na caridade multiplicando atos de absoluta conformidade à vontade divina, e consolando-se com o pensamento de que, graças a essas provações, no céu, grandezas divinas serão mais conhecidas, e Deus amado com maior perfeição. 

Imensos são, com efeito, os resultados dessas lutas para os corações valorosos! Cada vitória é uma conquista; triunfando de um defeito, adquirem maior domínio sobre si mesmos e, quanto mais fortes forem mais capazes serão de fazer o bem.              

Roma começou modestamente; no tempo dos reis era uma simples aldeia. Mas as lutas travadas de início contra seus vizinhos imediatos, e terminando sempre por conquistas, ampliaram-lhe o poder. Tornara-se, pouco a pouco, senhora de toda a Itália até que as guerras contra Cartago, felizmente terminadas, estenderam-lhe o domínio até a Espanha e a África. Novas lutas permitiram-lhe abranger em suas fronteiras a Gália, grande parte da Europa, da África setentrional e da Ásia ocidental e cada nova guerra, dilatando as suas fronteiras, aumentava o seu poder e a tornava cada vez mais temível a seus inimigos. 

Deu-se o mesmo com todas as grandes nações; foi só devido a numerosos combates, a árduas vitórias, que conseguiram estender seu domínio, intensificar suas forças e tornar-se aptas a exercer grande influência, e encetar e terminar de modo satisfatório importantes empreendimentos. Outros povos, ao contrário, mais amigos da paz, ou menos favorecidos pelas circunstâncias, permaneceram dentro de limites mais modestos; contentando-se em representar no teatro da história um papel apagado; assim o grão-ducado de Luxemburgo, e, mormente o principado de Mônaco ou a república de São Marinho em nada podem modificar a marcha dos negócios humanos. 

Os negociantes não têm todos um mesmo espírito de iniciativa nem dedicam ao comércio uma mesma atividade; nem dispõem tampouco dos mesmos meios de divulgar seus negócios. Alguns, amigos de uma vida tranqüila, continuam a gerir simplesmente o estabelecimento legado pelos antepassados, sem se esforçarem por alargar o círculo de sua freguesia; os lucros, que lhes bastam à manutenção da vida, não lhes permitem arriscar-se em novas empresas. Outros, mais trabalhadores e mais ambiciosos, são também mais esforçados e sujeitam-se a grandes fadigas; cada negócio, corajosamente empreendido e continuado, em que despendem habilidade e dedicação, multiplica-lhes os capitais e os habilita a realizar outros e maiores empreendimentos, a obter lucros mais consideráveis. 

Aqueles que estão preparados para a luta mostram uma constância muito maior quando é chegado o momento do combate; aqueles que contavam com as consolações da piedade e não esperavam esse estado de desolação, estão muito mais expostos a perder a coragem. Quantos, então, não caem no relaxamento! Irritam-se contra as dificuldades, agastam-se contra si mesmos e contra a própria fraqueza, deixam de lutar e caem num estado deplorável; ou então, o que acontece as mais das vezes lutam com indolência e não lucram nesses combates as imensas vantagens das almas generosas.  

Dá-se o mesmo na vida espiritual: as almas fracas, pouco generosas ou pouco tentadas, levam uma vida relativamente calma; as lutas que sustentam são poucos temíveis e como não patenteiam nem grande coragem nem grande energia, tais lutas, deixando-as mais ou menos no mesmo nível de virtude, não as tornam capazes de aumentar seus tesouros espirituais. Muitas almas permanecem toda a vida num estado apenas acima do estado inicial. Não é que seus méritos não se acrescentem uns aos outros, e que não se enriqueçam um pouco pela repetição de certos atos virtuosos; mas, se seus ganhos se adicionam, não progridem; essas almas ganham hoje o que já ganhavam há dez, vinte, trinta anos, atrás. Assemelham-se aos operários indolentes, cujo dia de trabalho, após um longo tirocínio, não produz mais do que produzia durante o aprendizado. Nesses cristãos, que combateram frouxamente, existem sempre muitas lacunas; suas virtudes não se desenvolveram; há, em sua conduta, uma quantidade de imperfeições contra as quais deixaram de lutar, e que já não percebem; suas disposições de renúncia, de humildade e de amor permanecem medíocres e as obras, aparentemente as mais brilhantes, realizadas nessas disposições, não podem ter, aos olhos de Deus, senão um valor medíocre. 

Inteiramente outros são os resultados obtidos pelos corações generosos que, caminhando de conquista em conquista, passados alguns anos dobraram, quadruplicaram decuplicaram, centuplicaram, talvez, suas forças. 

Todas as virtudes se lhes tornaram familiares e, por conseguinte praticaram-lhe atos com mais freqüência e mais perfeição do que na juventude, já fervorosa. Não se contentaram em afastar molemente o inimigo e conservar as posições conquistadas; atacaram-no com ardor, com perseverança, dizendo como Davi: Persequar inimicos: meos et comprehendam eos, nec dimittam donec deficiant . "Perseguirei meus inimigos, esperá-los-ei, não os abandonarei sem que os tenha vencido" (S. 17, 38). 

Tratar-se-á de dissipação? Cuidaram tanto em velar sobre os sentidos, em reprimir os desvios da imaginação, em fugir às divagações, em suprimir os pensamentos inúteis, que se tornaram, após anos de luta, senhores de seu interior; governam, quase à vontade, as potências da alma. Desde então, não perdem mais a presença de Deus e permanecem intimamente unidos a Ele por atos de amor, espontâneos e muito freqüentes. 

Se outrora sofreram vivamente as revoltas do amor próprio, julgaram não fazer bastante confessando-as, e aspiraram à humildade perfeita. Para obtê-la de Deus, deram prova de boa vontade, multiplicaram os atos de humildade, mesmo os que mais lhes custavam. Confessaram à si mesmos a própria fraqueza; não se envergonharam de dá-las a conhecer; foram voluntariamente ao encontro das humilhações e agradeceram ao Senhor aquelas que lhes couberam espontaneamente. Chega então o momento em que as humilhações nada mais custam e a humildade se exerce como que naturalmente e sem restrições.

Se combateram, com igual ardor e constância, a vivacidade do caráter, a sensualidade, o amor às comodidades, e praticaram corajosamente as virtudes contrária à estas acabarão por lhes serem fáceis e chegarão a praticá-las, não pela metade, como os principiantes, ou só com o auxílio de graças sensíveis e sob o impulso de uma imaginação entusiasta, mas com uma decisão amadurecida, tranqüila e firme, em que a vontade opera com força muito maior e, portanto, com mérito muito superior. 

Os hábitos adquiridos pela prática de repetidos atos, sem suprimir de todo a luta, facilitam a virtude; deixam-lhe o mérito intato, pois tais hábitos, frutos de longos esforços, são voluntários e quem os possui, feliz de tê-las adquirido, aceita-lhes todas as conseqüências. Sua vontade, apegada mais que nunca ao bem que procurou durante longo tempo, não carece mais de reações enérgicas para decidir-se a praticar tal ato de virtude, embora Suas decisões sejam mais absolutas e mais intensas.  

Mas a graça opera com maior liberdade, sobretudo no coração do cristão plenamente senhor de si. Outrora, a vitória custava-lhe caro; era mister, para obtê-la, empregar violentos esforços, que causavam vivas emoções. Esses abalos sensíveis, que alguns julgam necessários à aquisição de grandes méritos, não são, ao contrário, senão uma deplorável conseqüência da impureza e um obstáculo à perfeição de nossos atos.

Quando as paixões estão ainda muito vivas, dá-se um choque entre elas e a graça impulsora para o bem; então esta será, senão afastada, ao menos retardada e prejudicada em sua obra salutar. Quando a graça triunfa e a paixão é vencida, a alma fica satisfeita, ufana-se mesmo de se ter constrangido; de ter sofrido muito para cumprir seu dever; é inclinada a comprazer-se em si mesma e a medir seus méritos pela violência que se fez. É erro, pois, muitas vezes, nessas lutas violentas dos primeiros tempos, a natureza mesclar sua ação à da graça. Para repelir o mal, cumprir um dever difícil, ou fazer um sacrifício penoso, a alma recorre não somente aos motivos sobrenaturais, que não exercem ainda bastante influência sobre ela, mas a razões humanas, pelo menos a razões pouco elevadas, como a vergonha de si mesmo e de suas misérias, a procura da estima de outrem ou o amor de sua própria perfeição. É tão agradável à natureza poder dar-se um bom atestado! 

Sob a influência desses motivos, a natureza se torna inflexível para consigo mesma e a vitória não é devida ao puro domínio da graça. 

À medida que a alma progride, as revoltas da natureza, embora nunca desapareçam de todo, tornam-se menos violentas, e a graça, menos embaraçada, opera com maior poder. A vitória custa muito menos e, entretanto os atos de virtude são mais puros, mais eficazes; as faculdades sensíveis agitam-se pouco a pouco, a imaginação permanece mais, calma, o apetite irascível mantém-se em repouso, o espírito não raciocina tanto. Então Deus opera com maior liberdade. 

É Deus, pois, quem opera na alma e esta age nEle, por Ele, para Ele, dando aos seus mínimos atos um valor superior: uma breve oração, um ato simples de uma alma santa mais valem aos olhos de Deus que os esforços violentos de um principiante. A santíssima Virgem não sentia lutas e, entretanto quão perfeitas, quão meritórias, quão maravilhosamente sobrenaturais eram as Suas menores ações! Nós precisamos lutar, mas, a força de vencer, aproximamo-nos dessa tranqüilidade, desse domínio sobre nós mesmos, dessa força de ação que imprime aos atos humanos seu pleno valor. Sem dúvida, os atos virtuosos praticados pelos principiantes já merecem, e seu eterno tesouro vai crescendo, mas são moedas baixas que lhes acrescentam cada dia; mais tarde, depois de longas lutas, valentemente sustentadas, não serão mais moedas de prata, porém peças de ouro e notas de banco que acumularão. 

Oh! como serão ricas as almas generosas no dia da prestação de contas, quando for dado, e para sempre, a cada um, segundo suas obras. 

(O Caminho que leva a Deus pelo Cônego Augusto Saudreau, 2ª edição, 1944)

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