sexta-feira, 11 de novembro de 2016

O Gládio do Sacrifício


O homem, em seu estado atual, não é mais o que era ao sair das mãos de Deus. Ele traz ao nascer uma nódoa que lhe diminui a beleza original e o sobrecarrega de elementos heterogêneos: mistério que explica esse misto de nobreza e de ignomínia, de luz e de trevas, que caracteriza a sua existência terrestre. Dir-se-ia que ele participa ao mesmo tempo do anjo e do animal; pois tem aspirações sublimes e instintos grosseiros; pressente o céu e gravita para a terra.

Daí as contradições, as lutas, os contrastes de sua dupla natureza, que fazem do seu coração um campo de batalha.

Com efeito, duas tendências opostas, que São Paulo chama duas leis, disputam a nossa posse.


Uma nos atrai para o alto e volta as nossas simpatias para tudo o que é bom, luminoso, belo e infinito; outra nos arrasta para baixo e nos amarra nas vaidades mundanas.

Esta situação complexa tem de terminar por uma vitória ou por uma derrota. É preciso que a natureza má seja subjugada, imolada pelo homem regenerado; pois, de outro modo, este é que tombará afogado nas tonalidades da sua natureza decaída. O sacrifício de si próprio é a condição do triunfo. Ora, o gládio do sacrifício, que Jesus Cristo põe nas mãos de seus discípulos, é a cruz. “Quem quer ser dos meus – diz o divino Salvador – deve renunciar a si mesmo, tomar a sua cruz e seguir-me”. A cruz suprime os intervalos que nos separa de Deus; mortifica e vivifica; despedaça as nossas correntes; destaca-nos da terra para nos elevar ao céu; e a última das suas operações, enfim, é a morte, saldo do pecado e condição da vida, e que pela imolação de tudo o que é imperfeito e disforme, desembaraça e liberta o homem imortal.

Não nos furtemos as dores da cruz: elas são necessárias e úteis, porque nos arrancam a tudo o que não é conforme a Deus; por isso é que tanto mais agudas são, quanto mais presos nos achamos aos elementos de que nos devemos desprender. As agonias da morte são proporcionais ao grau de apego que temos as coisas corruptíveis; de modo que se o trabalho de separação se não for operando gradualmente no curso da vida, a morte será sempre cruel e dilacerante.

É a cruz que deve operar este despojamento gradual; ela desata pouco a pouco os laços terrestres e prepara-nos para o último e supremo livramento. O grande apóstolo São Paulo, que é ao mesmo tempo o preceptor e o modelo dos cristão, todos os dias se ensaiava para a morte: quotidie morior.

Assim, o cristão que aprendeu a morrer, no momento supremo não se sentirá preso à vida senão por um tênue fio que facilmente se quebra.

As mais dolorosas angústias não provêm aliás da imolação corporal: resultam antes dos esforços heróicos que o homem precisa fazer para se desprender de si mesmo. Então é que o gládio da cruz penetra até as íntimas raízes do nosso ser, e é muitas vezes por meio de derrotas, de tormentos e das mais humilhantes decepções, que ela nos arranca os ídolos que trazemos ocultos no coração.

Muito custa para nós abdicar de nossa própria vida e matar o amor de si mesmo. Mas não é esta a fonte do egoísmo, de todas as concupiscências e das paixões más? É mister que ele morra, pois Jesus Cristo disse: “Aquele que ama a sua própria vida, a perderá”. É mister que ele morra para que um outro amor, um outro eu, viva em seu lugar. “Eu vivo – dizia São Paulo – mas já não sou mais eu que vivo, é Jesus Cristo que vive em mim”.

Sim, a doutrina cristã é uma doutrina de sofrimentos e de lágrimas; mas é também a religião das imortais consolações. A cruz não fere senão para curar; ela muda as dores em júbilos, como a vara de Moisés transforma em água doce as águas amargosas.

A cruz nos salva. Não salva porém, senão aqueles que a aceitam voluntariamente como um instrumento de purificação e de salvação. Para os que sofrem, mas não se resignam, ela seria inútil.

Não basta sofrer; é preciso sofrer com Jesus Cristo. Não é bastante morrer; é preciso morrer com Jesus Cristo. O divino Salvador não aboliu as dores humanas: Ele as santificou, tornando-as expiatórias e curativas para as unir às suas. “Ele sofreu, porque o quis – diz o Evangelho – e devia passar pelo sofrimento para entrar na glória”.

É unindo volutariamente nossa cruz à Sua cruz, nossa morte à Sua morte que seremos glorificados e coroados com Ele.

A cruz é a pedra de toque pela qual se conhecem os cristãos. Enquanto uns a repelem, se irritam e blasfemam, outros a abraçam como uma penitência santificadora, como o instrumento da salvação. “É da natureza da das coisas, que o mal expulse o mal, o veneno combata o veneno e a dor elimine a dor” Diz Belarmino; o amargo das doenças é por isso curado com o amargo dos remédios. Pois é assim que a cruz imola o que dever morrer e santifica o que deve viver.

Compreendamos a grande lição do Calvário. Dois criminosos são crucificados ao lado de Jesus Cristo. Um deles aceita a expiação em união com a da Divina Vítima, e ele é salvo. O outro padece igualmente a morte, mas revolta-se contra a cruz; e este espira no desespero. Mistério significativo que nos mostra em que condições a cruz nos salva e nos abre o céu.

Os Livros Santos o repetem sem cessar: “Para participar da glória de Jesus Cristo, é necessário tomar parte nos Seus sofrimentos, e para ressuscitar com Ele é necessário morrer com Ele”.

Daí o sentido profundo desta frase: “Eu devo completar o que falta à paixão de Jesus Cristo”.

Que é, pois, o que falta a plenitude dos sofrimentos do Redentor? O que falta e se deve ajuntar é o concurso dos nossos próprios sofrimentos, é a aplicação dos tormentos expiatórios do Divino Cristo da Igreja a todos os membros do seu corpo místico.

O Senhor não nos uniu a Sua imolação, senão para nos associar a Sua vida e a Seus triunfos.

Tal é a misteriosa operação da cruz: Ela reproduz de alguma sorte o sacrifício voluntário de Jesus Cristo em cada cristão. A paixão se propaga pela paciência.

A paciência cristã não e efetivamente mais do que a própria paixão de Jesus Cristo sofrida por nós mesmos; porquanto a paciência, como a paixão, é a cruz voluntariamente aceita.

Também a paciência é a virtude essencial dos discípulos do evangelho; por ela nós possuímos as nossas almas e ganhamos a alma do nosso próximo. Nela reside a força; por conseqüência, a mulher forte é a que aceita e carrega cristãmente a sua cruz.

A paciência é o gênio da mãe; ela associa a coragem à dor e a magnanimidade aos sacrifícios. Ocasiões para exercê-las nunca falta à uma mãe, visto que em torno destas se acham os instrumentos da paixão.

Não há uma fibra em seu coração que não solte um gemido doloroso: ela sofre porque ama e sofre desmedidamente porque muitas vezes ama sem medida. Ela que não se furte à cruz; se aceitar sem resistência os seus rigores, ganhará preciosas bênção. As feridas abertas em seu coração maternal atraem os olhares da Divina Misericórdia e tornam-se fontes de graça para os filhos da dor.

Sem dúvida que a cruz é o gládio do sacrifício e a origem de muitas lágrimas, mas é também o penhor das consolações divinas e reata admiravelmente na região espiritual os laços que rompe na ordem da natureza. O mistério da cruz é uma loucura para os que se perdem; mas, para os verdadeiros cristãos, é o mistério do Amor cheio de esperança e de imortalidade.
Padre Theodoro Ratisbona

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