O homem, em
seu estado atual, não é mais o que era ao sair das mãos de Deus. Ele
traz ao nascer uma nódoa que lhe diminui a beleza original e o
sobrecarrega de elementos heterogêneos: mistério que explica esse misto
de nobreza e de ignomínia, de luz e de trevas, que caracteriza a sua
existência terrestre. Dir-se-ia
que ele participa ao mesmo tempo do anjo e do animal; pois tem
aspirações sublimes e instintos grosseiros; pressente o céu e gravita
para a terra.
Daí as contradições, as lutas, os contrastes de sua dupla natureza, que fazem do seu coração um campo de batalha.
Com efeito, duas tendências opostas, que São Paulo chama duas leis, disputam a nossa posse.
Uma nos atrai
para o alto e volta as nossas simpatias para tudo o que é bom, luminoso,
belo e infinito; outra nos arrasta para baixo e nos amarra nas vaidades
mundanas.
Esta situação
complexa tem de terminar por uma vitória ou por uma derrota. É preciso
que a natureza má seja subjugada, imolada pelo homem regenerado; pois,
de outro modo, este é que tombará afogado nas tonalidades da sua
natureza decaída. O sacrifício de si próprio é a condição do triunfo.
Ora, o gládio do sacrifício, que Jesus Cristo põe nas mãos de seus
discípulos, é a cruz. “Quem quer ser dos meus – diz o divino Salvador –
deve renunciar a si mesmo, tomar a sua cruz e seguir-me”. A cruz suprime
os intervalos que nos separa de Deus; mortifica e vivifica; despedaça
as nossas correntes; destaca-nos da terra para nos elevar ao céu; e a
última das suas operações, enfim, é a morte, saldo do pecado e condição
da vida, e que pela imolação de tudo o que é imperfeito e disforme,
desembaraça e liberta o homem imortal.
Não nos
furtemos as dores da cruz: elas são necessárias e úteis, porque nos
arrancam a tudo o que não é conforme a Deus; por isso é que tanto mais
agudas são, quanto mais presos nos achamos aos elementos de que nos
devemos desprender. As agonias da morte são proporcionais ao grau de
apego que temos as coisas corruptíveis; de modo que se o trabalho de
separação se não for operando gradualmente no curso da vida, a morte
será sempre cruel e dilacerante.
É a cruz que
deve operar este despojamento gradual; ela desata pouco a pouco os laços
terrestres e prepara-nos para o último e supremo livramento. O grande
apóstolo São Paulo, que é ao mesmo tempo o preceptor e o modelo dos
cristão, todos os dias se ensaiava para a morte: quotidie morior.
Assim, o
cristão que aprendeu a morrer, no momento supremo não se sentirá preso à
vida senão por um tênue fio que facilmente se quebra.
As mais
dolorosas angústias não provêm aliás da imolação corporal: resultam
antes dos esforços heróicos que o homem precisa fazer para se desprender
de si mesmo. Então é que o gládio da cruz penetra até as íntimas raízes
do nosso ser, e é muitas vezes por meio de derrotas, de tormentos e das
mais humilhantes decepções, que ela nos arranca os ídolos que trazemos
ocultos no coração.
Muito custa
para nós abdicar de nossa própria vida e matar o amor de si mesmo. Mas
não é esta a fonte do egoísmo, de todas as concupiscências e das paixões
más? É mister que ele morra, pois Jesus Cristo disse: “Aquele que ama a
sua própria vida, a perderá”. É mister que ele morra para que um outro
amor, um outro eu, viva em seu lugar. “Eu vivo – dizia São Paulo – mas
já não sou mais eu que vivo, é Jesus Cristo que vive em mim”.
Sim, a
doutrina cristã é uma doutrina de sofrimentos e de lágrimas; mas é
também a religião das imortais consolações. A cruz não fere senão para
curar; ela muda as dores em júbilos, como a vara de Moisés transforma em
água doce as águas amargosas.
A cruz nos
salva. Não salva porém, senão aqueles que a aceitam voluntariamente como
um instrumento de purificação e de salvação. Para os que sofrem, mas
não se resignam, ela seria inútil.
Não basta
sofrer; é preciso sofrer com Jesus Cristo. Não é bastante morrer; é
preciso morrer com Jesus Cristo. O divino Salvador não aboliu as dores
humanas: Ele as santificou, tornando-as expiatórias e curativas para as
unir às suas. “Ele sofreu, porque o quis – diz o Evangelho – e devia
passar pelo sofrimento para entrar na glória”.
É unindo volutariamente nossa cruz à Sua cruz, nossa morte à Sua morte que seremos glorificados e coroados com Ele.
A cruz é a
pedra de toque pela qual se conhecem os cristãos. Enquanto uns a
repelem, se irritam e blasfemam, outros a abraçam como uma penitência
santificadora, como o instrumento da salvação. “É da natureza da das
coisas, que o mal expulse o mal, o veneno combata o veneno e a dor
elimine a dor” Diz Belarmino; o amargo das doenças é por isso curado com
o amargo dos remédios. Pois é assim que a cruz imola o que dever morrer
e santifica o que deve viver.
Compreendamos a
grande lição do Calvário. Dois criminosos são crucificados ao lado de
Jesus Cristo. Um deles aceita a expiação em união com a da Divina
Vítima, e ele é salvo. O outro padece igualmente a morte, mas revolta-se
contra a cruz; e este espira no desespero. Mistério significativo que
nos mostra em que condições a cruz nos salva e nos abre o céu.
Os Livros
Santos o repetem sem cessar: “Para participar da glória de Jesus Cristo,
é necessário tomar parte nos Seus sofrimentos, e para ressuscitar com
Ele é necessário morrer com Ele”.
Daí o sentido profundo desta frase: “Eu devo completar o que falta à paixão de Jesus Cristo”.
Que é, pois, o
que falta a plenitude dos sofrimentos do Redentor? O que falta e se
deve ajuntar é o concurso dos nossos próprios sofrimentos, é a aplicação
dos tormentos expiatórios do Divino Cristo da Igreja a todos os membros
do seu corpo místico.
O Senhor não nos uniu a Sua imolação, senão para nos associar a Sua vida e a Seus triunfos.
Tal é a
misteriosa operação da cruz: Ela reproduz de alguma sorte o sacrifício
voluntário de Jesus Cristo em cada cristão. A paixão se propaga pela
paciência.
A paciência
cristã não e efetivamente mais do que a própria paixão de Jesus Cristo
sofrida por nós mesmos; porquanto a paciência, como a paixão, é a cruz
voluntariamente aceita.
Também a
paciência é a virtude essencial dos discípulos do evangelho; por ela nós
possuímos as nossas almas e ganhamos a alma do nosso próximo. Nela
reside a força; por conseqüência, a mulher forte é a que aceita e
carrega cristãmente a sua cruz.
A paciência é o
gênio da mãe; ela associa a coragem à dor e a magnanimidade aos
sacrifícios. Ocasiões para exercê-las nunca falta à uma mãe, visto que
em torno destas se acham os instrumentos da paixão.
Não há uma
fibra em seu coração que não solte um gemido doloroso: ela sofre porque
ama e sofre desmedidamente porque muitas vezes ama sem medida. Ela que
não se furte à cruz; se aceitar sem resistência os seus rigores, ganhará
preciosas bênção. As feridas abertas em seu coração maternal atraem os
olhares da Divina Misericórdia e tornam-se fontes de graça para os
filhos da dor.
Sem dúvida que
a cruz é o gládio do sacrifício e a origem de muitas lágrimas, mas é
também o penhor das consolações divinas e reata admiravelmente na região
espiritual os laços que rompe na ordem da natureza. O mistério da cruz é
uma loucura para os que se perdem; mas, para os verdadeiros cristãos, é
o mistério do Amor cheio de esperança e de imortalidade.
Padre Theodoro Ratisbona
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