quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Devemos reconhecer como de Deus todo o amor que Lhe dedicamos


O amor dos homens para com Deus tira a sua origem, progresso e perfeição do amor eterno de Deus para com os homens. E' o sentimento universal da Igreja nossa mãe, a qual, com zelo ardente, quer que reconheçamos a nossa salvação, e os meios para a ela chegar, como oriundos só da misericórdia do Salvador, a fim de que na terra como no céu só a Ele seja dada honra e glória. 

Que tens tu que não hajas recebido? diz o divino Apóstolo falando dos dons de ciência, eloqüência e de outras que tais qualidades dos pastores eclesiásticos, e, se o recebeste, por que te glorificas disso como se o não houvesses recebido (I Cor 4, 7)? 

E' verdade, nós tudo havemos recebido de Deus; mas, acima de tudo, havemos recebido os bens sobrenaturais do santo amor. 
E, se os havemos recebido, por que havemos de conceber glória deles? 
De certo, se alguém se quisesse enaltecer por haver feito algum progresso no amor de Deus, ai! mesquinho homem, dir-lhe-íamos, estavas inerte na tua iniqüidade, sem que te houvesse ficado nem vida nem força para te levantares (como sucedeu à princesa da nossa parábola, livro III, cap. 3), e Deus, pela Sua infinita bondade, acudiu em teu auxílio, e, bradando em altas vozes: Abre a boca da tua atenção, e enchê-le-ei (Sl 80, 2), Ele próprio pôs Seus dedos entre teus lábios e descerrou teus dentes, lançando dentro do teu coração a Sua santa inspiração, e recebeste-a; depois, tornando tu aos teus sentidos, por diversos movimentos e diferentes meios Ele continuou a revigorar-te o espírito, até infundir nele a Sua caridade, como a tua vital e perfeita saúde.
Ora, dize-me, pois agora, mísero, em tudo isso que fizeste, de que é que te podes gabar? Consentiste, bem o sei: o movimento da tua vontade seguiu livremente o movimento da graça celeste; mas tudo isso que outra coisa é senão receber a operação divina e lhe não resistir? e que há nisso que não hajas recebido? Sim, pobre homem que és, recebeste até mesmo a recepção de que te glorificas, e o consentimento de que te gabas; porquanto, dize-me, rogo-te, não me hás de confessar que, se Deus te não houvesse prevenido, nunca terias sentido a Sua bondade, nem, por conseguinte consentido no Seu amor? Não, nem sequer terias tido um só bom pensamento para Ele. O Seu movimento deu o ser e a vida ao teu, e, se a Sua liberalidade não houvesse animado, excitado e provocado a tua liberdade pelos poderosos atrativos da Sua suavidade, a tua liberdade teria permanecido sempre inútil para a tua salvação. 

Confesso que cooperaste na inspiração consentindo; mas, se não o sabes, eu te faço saber que a tua cooperação nasceu da operação da graça e da tua livre vontade conjuntamente, mas de tal sorte, todavia que, se a graça não houvesse prevenido e enchido teu coração com a sua operação, jamais teria ele tido nem o poder nem o querer de fazer qualquer operação. 

Mas, dize-me de novo, rogo-te, homem vil e abjeto, não és ridículo quando pensas ter parte na glória da tua conversão porque não repeliste a inspiração? Não é fantasia dos ladrões e dos tiranos o pensarem dar a vida àqueles a quem não a tiram? e não é uma louca impiedade pensares que tenhas dado a santa, eficaz e viva atividade à inspiração divina porque não lha tiraste por tua resistência. Não podemos impedir os efeitos da inspiração, mas não lhos podemos dar: ela tira sua força e virtude da bondade divina, que é o lugar da sua origem, e não da vontade humana, que é o lugar do seu acesso. 

Acaso não nos indignaríamos com a princesa da nossa parábola se ela se gabasse de ter dado a virtude e propriedade às águas cordiais e outros medicamentos, ou de se haver curado por si mesma? porque, se ela não houvesse recebido os remédios que o rei lhe deu e lhe derramou na boca, quando semimorta quase não tinha mais sentimento, eles não teriam tido operação.

Dir-lhe-íamos: Sim, ingrata que sois, bem vos podíeis obstinar em não receber os remédios, e mesmo, havendo-os recebido em vossa boca, podíeis vomitá-los: mas não é verdade, entretanto, que lhes tenhais dado o vigor ou virtude, pois eles o tinham por sua propriedade natural. Apenas consentistes em recebê-los e em que eles fizessem a sua ação, e, ainda assim, nunca teríeis consentido se o rei não vos houvesse primeiramente revigorado e depois solicitado a tomá-los: nunca os teríeis recebido se ele vos não houvesse ajudado a recebê-los, abrindo-vos a boca com seus dedos, e derramando a poção dentro dela. Não sois, pois, um monstro de ingratidão em vos quererdes atribuir um bem que de tantos modos deveis ao vosso caro esposo?

O admirável peixinho a que chamam equinóide, rêmora ou pára-nau (1), tem realmente o poder de parar ou não parar o navio que singra o alto mar a plenas velas; mas não tem o poder de fazê-lo nem vogar, nem singrar ou abicar; pode impedir o movimento, mas não o pode dar. O nosso livre arbítrio pode deter e impedir o curso da inspiração, e, quando o vento favorável da graça celeste enfuna as velas do nosso espírito, em nossa liberdade está recusar o nosso consentimento, e impedir por esse meio o efeito do favor do vento; mas, quando o nosso espírito singra e faz felizmente a sua navegação, não somos nós que fazemos vir o vento da inspiração, nem que enchemos dele as nossas velas, nem que damos o movimento à nau do nosso coração: mas apenas recebemos o vento que vem do céu, consentimos no seu movimento, e deixamos ir à nau sob o vento sem a impedir pela rêmora da nossa resistência. 

E', pois, a inspiração que imprime no nosso livre arbítrio a feliz e suave influência pela qual não somente lhe faz ver a beleza do bem, mas o aquece, o ajuda, o reforça e o move tão docemente, que por esse meio ele se compraz e se coloca livremente no partido do bem. 

O céu prepara as gotas do fresco orvalho na primavera, e verte-as em chuva sobre a face do mar, e as madrepérolas que abrem suas conchas recebem essas gotas, que se convertem em pérolas; mas, ao contrário, as madrepérolas que têm suas conchas fechadas não impedem que as gotas caiam sobre elas; impedem, todavia que caiam dentro delas. Ora, o céu enviou seu orvalho e sua influência sobre uma outra madrepérola? E por que foi então que uma por efeito produziu sua pérola, e a outra não? O céu tinha sido liberal para a que ficou estéril tanto quanto era requerido para torná-la fértil, porém ela impediu o efeito do seu benefício mantendo-se fechada e coberta. E, quanto à que concebeu a pérola, esta nada tem nisso que não haja recebido do céu, nem sequer a sua abertura pela qual recebeu o orvalho; porquanto sem o sentimento dos raios da aurora que docemente a excitaram, ela não teria vindo à superfície do mar, nem teria aberto a sua concha. 

Teótimo, se nós temos algum amor a Deus, caiba a honra e a glória disso a Ele que tudo fez em nós, e sem quem nada foi feito; a nós caiba a utilidade e a gratidão.

Pois é a partilha da Sua divina bondade conosco, o deixar-nos Ele o fruto dos Seus benefícios e reservar-Se a honra e o louvor deles; e certamente, já que todos nós nada somos senão por Sua graça, nada devemos ser senão para Sua glória. 

1) Equinóide ou rêmora, peixinho de mar, ao qual os antigos atribuíam o poder de parar os navios. 

(Tratado do amor de Deus - São Francisco de Sales, livro quarto, capítulo VI)

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