Não podemos enxertar um carvalho em uma pereira, porque são muito diferentes uma da outra; da mesma forma não podemos enxertar a cólera e a desesperação na caridade. Não sei que utilidade tira do desespero o amor divino, a não ser que reduzamos dessa desesperação a justa desconfiança de nós mesmos ao sentimento que devemos ter de nosso nada, da fraqueza e inconstância dos favores, assistência e promessas do mundo.
E como pode ser útil a caridade e a tristeza se entre os dons do Espírito Santo, a alegria esta a par da caridade? Contudo o Santo Apóstolo diz: "A tristeza que vem de Deus opera a penitência para a salvação; mas a tristeza mundana opera a morte". Há pois uma tristeza, segundo Deus, que os pecadores exercem pela penitência dos pecados, os bons pela compaixão e pelas misérias temporais do próximo, e os perfeitos, pela condolência das calamidades espirituais das almas. Assim Davi, São Pedro e Santa Madalena choraram pelos seus pecados; Agar chorou, vendo o seu filho quase a morrer de sede; Jeremias sobre a ruína de Jerusalém; Nosso Senhor à cerca dos judeus, e o seu grande apóstolo, gemendo, dizia: "Andam muitos, já vos tenho dito e de novo repito, que são inimigos da Cruz de Jesus Cristo".
1 - Provém do inimigo infernal, que por mil pensamentos tristes, melancólicos e enfadonhos, obscurece o entendimento, torna a vontade lânguida, oprime a alma; e como um nevoeiro espesso ofusca o peito e a cabeça, torna a respiração difícil e põe o viajante perplexo; assim o inimigo, enchendo de pensamentos tristes o espírito humano, tira-lhe a facilidade de aspirar a Deus, e dá-lhe um enfado e desalento extremo, que o conduzem ao desespero e à perdição.
Diz-se que há um peixe apelidado diabo do mar, que, revolvendo-se no limo, turba toda a água, e põe-se de emboscada para se atirar aos peixinhos, arrojando-se a eles e devorando-os; talvez daqui venha o provérbio; "Pescar nas águas turvas". Ora o demônio do inferno é como o diabo do mar, porque emboscando-lhe na tristeza, envolve a alma em um turbilhão de pensamentos enfadonhos, arrojados ao entendimento, espalhados sobre os afetos, e, enchendo-os de desconfiança, inveja e apreensões supérfluas a cerca do pecado passado, fornece uma multidão de sutilezas vãs, agras e melancólicas, para que desprezemos todas as razões e consolações celestes.
2 - Outras vezes a tristeza procede da condição natural, quando domina em nós a melancolia; e não sendo isto em si mesmo vicioso, serve-se dela o inimigo para tramar e urdir mil tentações nas nossas almas, porque assim como as aranhas não fazem de ordinário as suas teias senão quando o tempo esta fusco e o céu nublado, assim o espírito infernal não encontra tanta facilidade em tecer as suas sugestões nos espíritos serenos, benignos e alegres, como nos tristes, aborrecidos e melancólicos; e a razão é que facilmente os enreda com ódios, murmurações, invejas, desconfianças, censuras, preguiça e apatia espiritual.
3 - Finalmente há uma tristeza, que a variedade dos acidentes humanos produz. "Que alegria posso eu ter, diz Tobias, não podendo ver a luz do céu?" Assim Jacó estremeceu-se ao saber da morte de seu filho José, e Davi da de Absalão. Ora esta tristeza é a comum aos bons e aos maus; mas nos bons é moderada pela resignação à vontade de Deus, como se viu em Tobias, que deu graças à divina Majestade por todas as adversidades que o afligiam, e em Jó, que bem disse o nome do Senhor, em Daniel, que converteu as suas dores em cânticos. Pelo contrário, nos mundanos, esta tristeza lhes é ordinária, e transforma-se em pena, desespero e tormento de espírito, porque são semelhantes as marmotas que estão tristes e aborrecidas na minguante da lua; mas na lua nova dançam, saltam e brincam. O mundano torna-se enfadonho, aborrecido e triste quando lhe faltam as prosperidades terrenas; mas quando as possuí torna-se altivo, folgazão e insolente.
A tristeza que dá a verdadeira penitência não deve chamar-se tristeza, mas descontentamento e detestação do mal; tristeza que nunca esta aborrecida e tediosa; tristeza que não entorpece o espírito, mas o torna ativo, pronto e deligente; tristeza que não abate o coração, mas o eleva pela oração e esperança até ao arrebatamento da mais fervorosa devoção; tristeza que, no fundo das suas amarguras, produz sempre a suavidade duma incomparável consolação, segundo o preceito do grande Santo Agostinho: "O penitente entristece-se sempre; mas alegra-se sempre com a sua tristeza". A tristeza, que opera a penitência sólida e o arrependimento agradável, diz Cassiano, é obediente, afável, humilde, boa, suave, paciente, como nascida da caridade; tanto que, estendendo-se à dor do corpo e à contrição do espírito, é em certo modo alegre, animada e avigorada com a esperança do seu proveito; retém toda a doçura da afabilidade e longanimidade, sendo em si mesma um dos frutos do Espírito Santo, que o Santo Apóstolo expõe: "Os frutos do Espírito Santo são caridade, gozo, paz, longanimidade, bondade, benignidade, fé, mansidão e continência". Tal é a verdadeira penitência e a tristeza santa, que de certo não é amarga e melancólica, mas só atenta e propensa a rejeitar, detestar e impedir o mal do pecado, quanto ao passado e futuro, só por puro amor de Deus, ao qual ama sem mancha de amor imperfeito, sem nenhum interesse do castigo, ou recompensa prometida.
Eis o uso deste arrependimento amoroso, que de ordinário se pratica por enlevo do coração em Deus, como faziam os antigos penitentes.
Sou vosso, ó meu Deus; salvai-me, tende misericórdia de mim, porque a minha alma confia em vós; salvai-me, Senhor, porque as águas submergem meu coração; tratai-me como a um de vossos servos; Senhor sede-me propício, a mim, pobre pecador. É neste sentido que se diz que a oração justifica, porque o arrependimento suplicante, ou a súplica do arrependimento, elevam a alma a Deus, e, reunindo-se à sua bondade obtém sem dúvida perdão em virtude do santo amor que a move.
Também vemos muitas vezes penitência muito impacientes, confusas, apressadas, inquietas, ásperas, as quais por fim se tornam infrutíferas, e sem lhes seguir emenda alguma, por não procederem dos verdadeiros motivos da penitência, mas do amor próprio e natural.
A tristeza do mundo opera a morte, diz o apóstolo. Convém pois evitá-la e rejeitá-la quando pudermos. Se é natural, devemo-la repelir, contrariando seus movimentos, alegrando-a, com divertimentos próprios e usando de remédios de métodos de vida que os médicos recomendam. Se provém de tentações, convém descobrir o coração ao padre espiritual, que nos prescreverá os meios próprios para vencermos, segundo o que dissemos na quarta parte da Introdução à vida devota. Se é acidental, consultaremos o que diz o livro oitavo, para vermos como são amáveis as tribulações aos filhos de Deus, e como a grandeza das novas esperanças na vida eterna deve tornar pouco consideráveis todos os acontecimentos passageiros da temporal.
Há ações que dependem das disposições físicas; mas, embora estejamos melancólicos, podemos, mesmo sem graça, dizer palavras graciosas, boas, corteses, e não obstante a inclinação, praticar obras convenientes com palavras e obras de caridade, doçura e condescendência. Temos desculpas de nem sempre estarmos alegres, porque a alegria não esta ao nosso dispor; mas não temos desculpas de não sermos sempre condescendentes, porque isso depende de nós e só basta vencermos o gênio e inclinações contrárias.
Não compreendemos como as almas que se entregaram à bondade divina não estão sempre contentes, porque, onde há alegria semelhante a esta? Devíamos cantar sempre; e não vos deve inquietar as imperfeições que Ele ama as almas; protege-as e guia-as ao porto com afeto. Ficai pois em paz e vivei com doçura e humildade do coração.
Que felicidade pertencer completamente a Deus! porque Ele ama as almas; protege-as e guia-as ao porto da eternidade que desejamos. Ficai pois assim, e não permitais nunca que a vossa alma se entristeça, nem viva com amargura e escrúpulo, porque Aquele que amou e morreu para a fazer viver, é tão bom, tão doce e tão amável!
Pensamentos consoladores de São Francisco de Sales
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