Entre os louvores que os santos dão a Abraão, São Paulo eleva acima de
todos os outros, este:" que ele creu, esperando contra toda a
esperança". Deus tinha-lhe prometido multiplicar a sua posteridade como
as estrelas do céu e as areias do mar e no entanto recebeu ordem de
sacrificar o seu único filho. Abraão não perdeu por isto a esperança, e
creu que obedecendo, não deixaria de manter a sua promessa.
Grande, com certeza, foi a sua esperança; porque nada via em que a apoiasse senão a palavra de Deus.
Oh! como é um alicerce forte e sólido esta palavra de Deus! oh! como é
um alicerce forte e sólido esta palavra, visto ser infalível!
Abraão vai pois cumprir a ordem de Deus com simplicidade nunca vista;
porque não considerou nem replicou como quando Deus lhe ordenou que
saísse da sua terra e dentre os seus parentes. Caminhando três dias e
três noites com seu filho, sem saber precisamente para onde ia, levando a
lenha para o sacrifício, seu filho lhe perguntou onde estava o
holocausto, ao que respondeu Abraão: "Meu filho o Senhor proverá a
isso".
Oh! Meu Deus! como seríamos felizes se nos acostumássemos a dar esta
resposta aos nossos corações, quando se afligem por qualquer coisa:
Nosso Senhor proverá; e depois disso não tivéssemos mais ansiedade e
perturbação que Isaac! porque se calou logo, crendo que o Senhor
proveria a isso como seu pai lhe tinha afirmado.
Grande é com certeza a confiança que Deus nos pede que tenhamos no seu
cuidado paternal e da sua divina Providência; mas porque razão a não
teremos nós visto que ninguém pode ser enganado e que ninguém confia em
Deus sem tirar os frutos desta confiança?
Considerai que o Nosso Senhor disse aos seus apóstolos para estabelecer
com eles esta santa e amorosa confiança: "Quando eu vos enviei ao mundo,
sem dinheiro e sem provisão alguma, faltou-vos alguma coisa?" E eles
disseram: Não." Ide lhes disse Ele, e não vos inquieteis nem do que
comereis, nem mesmo do que bebereis, nem com o que vos cobrireis, e nem
do que direis perante os magistrados; porque em todas as ocasiões meu
Pai que esta no céu vos dará tudo o que é necessário e ensinar-vos-á o
que haveis de dizer".
Mas eu sou tão pouco espiritual, me dirá alguém: não posso tratar com os
grandes e não tenho ciência. É o mesmo: Ide e confiai em Deus, porque
Ele disse: "Embora uma mãe se esqueça de seu filho, eu não vos
esquecerei; porque vos tenho gravado no coração e nas mãos".
Pensais que aquele tem cuidado em provar ao alimento das aves do céu e
dos animais da terra, que não semeiam nem recolhem, não proverá de tudo o
que é necessário aquele que confiar plenamente na sua Providência? Ele
que esta unido a Deus, que é o sumo bem?
Convém saber que abandonar a sua alma e entregar-se a si próprio nada
mais é do que deixar a própria vontade para a entregar a Deus: porque de
nada serviria renunciarmos a nós mesmos se não fosse para nos unirmos à
divina bondade: fazer outra coisa, seria parecer-nos com esses
filósofos que abandonaram tudo e a si mesmo para se entregarem a vãs
pretensões e ao estudo da filosofia. Sirva de exemplo Epíteto, que sendo
escravo, e querendo libertá-lo o seu Senhor por causa da sua grande
sabedoria, não quis a liberdade por uma das maiores renúncias, e ficou
na escravidão, com uma tal pobreza que depois de morrer só lhe
encontraram uma lâmpada, que foi vendida muito cara por ter pertencido a
um tal homem. Quanto a nós não queiramos deixar-nos senão para nos
entregar-nos à mercê da vontade de Deus. Há muitos que dizem a Nosso
Senhor: Entrego-me a vós sem reserva; mas há poucos que pratiquem este
abandono, que é uma perfeita submissão em receber toda a sorte de
acontecimentos, logo que seja por ordem da Providência de Deus, seja
aflição ou consolação, doença ou saúde, pobreza ou riqueza, desprezo ou
honra, opróbrio ou glória.
Isto entendo eu relativamente à parte superior do nosso ser; porque
quanto à parte inferior, ninguém dúvida que ela e a inclinação natural
tendem antes para o lugar da honra do que do desprezo; das riquezas do
que da pobreza; embora ninguém ignore que o desprezo e a pobreza são
mais agradáveis a Deus do que a honra e a abundância,
Vivamos, enquanto agradar a Deus, neste vale de misérias com uma inteira
submissão à sua vontade. Noutro dia me recordava do que dizem os
autores a respeito do alcião, ave pequena, que põe na margem do rio.
Estas aves fazem ninho tão redondos e apertados, que as águas do mar não
podem penetrar, e somente em cima deixam um orifício por onde podem
respirar; dentro alojam os filhinhos, para que, se o mar os surpreender
possam nadar com segurança e flutuar sobre as águas sem se encherem nem
submergirem; e o ar que entra por esse pequeno orifício serve de
contrapeso e é balanço por tal forma a estas barquinhas, que nunca se
viram.
Oh! como eu desejo que os nossos corações estejam calafetados por toda a
parte, para que, se a tempestade e as tormentas do mundo os agitarem,
lhes não penetrem, e que só haja uma abertura para o céu, para
respirarmos e aspirarmos ao nosso Salvador! E por quem será feito este
ninho? Pelos filhinhos d'Aquele que o fez por amor de Deus, por afetos
divinos e celestes. Mas, enquanto os alciões fabricamos seus ninhos e os
seus filhinhos ainda estão tenros para suportar o embate das vagas, ah!
Deus terá disso cuidado e usará de compaixão, impedindo que o mar entre
neles e os leve.
Oh! Deus! eis a vossa bondade soberana, que manterá o ninho dos nossos
corações, pelo seu santo amor contra os assaltos do mundo, e garantirá
que eles sejam vencidos. Ah! como eu amo essas aves que estão carcadas
pelo mar, e não vivem senão dar e só vêem o céu?
Nadam como peixes e cantam como aves; e o que mais me agrada é que a
âncora é lançada da parte superior e não da inferior, para os garantir
contra as vagas.
Queria o doce Jesus tornar-nos assim de maneira que, cercados pelo mundo
e pela carne, vivamos do espírito; que, entre as vaidades da terra,
contemplemos sempre o céu que, vivendo entre os homens, o louvemos com
os anjos, e que o fundamento das nossas esperanças esteja sempre no
paraíso; que em tudo por tudo o amor santo seja o nosso grande amor. Ah!
mas quando será que nos consumirá e quando consumirá a nossa vida para
fazer morrer a nós mesmos o fazer-nos reviver para o nosso Salvador? A
ele só sejam dados glória, honra e louvor. Já que o nosso propósito
inviolável tende incessantemente para o amor de Deus, nunca serão fora
de propósito as palavras do amor de Deus.
Nada mais vos direi, nem sobre grande o abandono de tudo e de nós mesmos
a Deus, nem sobre a saída do nosso país e da casa de nossos pais. Não,
não quero falar. Queira Deus esclarecer-nos e mostrar-nos o seu gosto;
porque embora perigue tudo o que há em nós, segui-lo-e-mo para toda
parte onde nos conduza.
Oh! como é bom estar com Ele seja em que lugar for! Eu penso na alma do
bom ladrão. Nosso Senhor tinha-lhe dito que naquele dia estaria com Ele
no paraíso e apenas a sua alma se apartou do corpo, eis que o conduz ao
inferno. Sim, porque devia estar com Nosso Senhor, e Nosso Senhor desceu
aos infernos; foi pois aí com Ele. Deus verdadeiro! que pensaria ele ao
descer e vendo esses abismos com a sua vista interior? Creio que diria
em Jó: "Quem me fará a graça, Meu Deus, que me defendeis e conserveis no
inferno?" e com Daví: "Não, nenhum mal temerei, porque Senhor, Vós
estais comigo". Não, enquanto estão vivas as nossas resoluções, nada nos
perturba. Quando morrermos, volte-se tudo, isso pouco me importa
contando que isto subsista.
As noites são dias, quando Deus permanece em nosso coração, e os dias são noites quando Ele lá não esta.
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